Prevenção e gestão de conflitos nas empresas

Empresas não negociam, não gerem os próprios negócios. Somos nós, as pessoas que pertencem às empresas que negociamos, interagimos e inovamos. Parece óbvio, mas é preciso reforçar que o gestor é uma pessoa, e como tal, lida diariamente com outras pessoas, que lidam diariamente com outras pessoas nas convivências pessoais e profissionais.
É preciso desenvolver o olhar para a pessoa humana, não mais com uma visão de “ser racional”. É um ser racional, emocional e interrelacional. O que isso quer dizer? Ser humano, que tem uma compreensão de si mesmo, sentimentos, pensamentos e comportamentos, que interage com o outro, dentro de um sistema complexo de relações.
As empresas estão reconhecendo que as pessoas são seus maiores ativos: ativos intangíveis que propiciam atingir ativos tangíveis. Neste caminho, é fundamental compreender como pensamos, sentimos e agimos diante das adversidades nos relacionamentos, e como essa interação impacta em resultados numéricos, na produtividade, nas atividades cotidianas.
Ao gerenciar pessoas é preciso gerir conflitos. Gerir conflitos envolve um leque de ações que têm origem a partir do diálogo e da construção do consenso. É a partir de uma comunicação sustentável nas relações, em que as trocas entre os indivíduos acontecem com equilíbrio e transformação positiva.
Os conflitos nas empresas
Um problema muito relatado nas organizações é pertinente a relacionamentos, confrontos, desentendimentos, discordâncias, fofocas, mensagens mal compreendidas, gerando improdutividade e, muitas vezes, rompimentos nas relações. Essas situações revelam a dificuldade em lidar com o outro no ambiente de trabalho, configurando-se numa das maiores causas dos conflitos no mundo corporativo.
O conflito é algo que faz parte das relações humanas. Nas interações cotidianas, vivenciamos controvérsias em vários ambientes, principalmente no local de trabalho em que convivemos a maior parte do dia. Algumas controvérsias parecem imperceptíveis, mero ruídos de comunicação, mesmo assim, estão presentes e impactam individual e coletivamente.
Dentro das organizações, os conflitos geram custos, muitas vezes invisíveis e de difícil mensuração (Burbridge, 2012). São fatores que ocasionam graves danos ao nosso desempenho e ao funcionamento do negócio a longo prazo.
As disputas e controvérsias possuem muitos efeitos estressantes, impactando na produtividade, nos resultados, no trabalho em equipe, na comunicação entre os vários públicos com os quais a empresa interage (stakeholders), no desempenho em projetos e metas.
Quando não administrados, os conflitos vão se acumulando a ponto de escalonar e ocasionar situações problemáticas como: desmotivação, boicotes e vinganças, fofocas, operação tartaruga, resistência a mudanças, trabalhos mal executados, falhas de comunicação, erros não admitidos, omissões, insatisfações, grande rotatividade, e, até mesmo, causa de adoecimentos e afastamentos (como o burnout), acidentes laborais e número excessivo de reclamações trabalhistas (processos judiciais).
Todos esses fatores repercutem consideravelmente na relação com clientes, consumidores, parceiros, terceirizados e fornecedores, por ocasionar atrasos em entregas de produtos, serviços incompletos, insatisfação no atendimento. O resultado é um cenário problemático, gerando danos de grandes proporções, diante da desconexão entre as pessoas que formam toda a equipe da empresa.
No entanto, é possível reverter esta situação problemática, ao transformar positivamente a forma de interação entre as pessoas, através da comunicação e de técnicas de prevenção e gestão de conflitos, com respeito e incentivo à colaboração.
Em um ambiente de diálogo, os líderes e colaboradores lidam de forma positiva com controvérsias e adversidades, viabilizando soluções criativas e oportunidades de mudanças que promovam melhores resultados.
Aprender a lidar positivamente com conflitos é a chave para promover a transformação nos relacionamentos, o desenvolvimento de pessoas e equipes e, consequentemente, o crescimento sustentável da organização, diante da longevidade dos relacionamentos.
A partir da aquisição das competências, ferramentas e habilidades essenciais líderes e equipes estarão preparados para virar a chave nos conflitos.
Dentre os benefícios para as empresas que podemos listar são: a melhoria do engajamento, a harmonia das equipes, reduzindo índices de turnover e absenteísmo e, principalmente, o fortalecimento da cultura organizacional.
A gestão positiva de conflitos colabora na longevidade dos relacionamentos, com a melhoria da comunicação, normaliza os conflitos que porventura surgem dos desafios cotidianos dentro das empresas e propicia a capacitação para as equipes superarem estes obstáculos com aprendizados. A convivência dentro da organização passa a ser mais saudável e produtiva.
Evitar ou prevenir conflitos?
Prevenir não é o mesmo que evitar! Abrange criar estratégias e atitudes para identificar possíveis controvérsias e ruídos, de forma a criar soluções.
A prevenção dos conflitos começa pela mudança de mentalidade.
Conflitos! O que passa em nossa mente quando ouvimos a palavra conflito? Quais sensações sentimos ao pensar a respeito de um conflito pessoal que possamos ter vivido ou estamos vivenciando? Que sentimentos surgem? Quais atitudes temos diante desta situação?
O primeiro passo para administrar essas adversidades nos relacionamentos é compreender o que pensamos, sentimos e como nos comportamos diante dos conflitos.
A percepção de mundo que temos impacta em nossas ações.
A grande maioria de nós não reflete muito sobre como os conflitos impactam em nossas vidas, nesta perspectiva: pensamentos, sensações (físicas), sentimentos e comportamentos.
Simplesmente, vivenciamos todos os dias situações de controvérsia, em maior ou menor grau, e agimos instintivamente, ou evitando ou reagindo a estes estímulos.
É importante compreendermos que o que pensamos a respeito dos conflitos determina nossos comportamentos, passando pelas sensações e sentimentos. Assim, a construção do significado que damos à palavra é determinante em nossas escolhas de como lidar com essas adversidades cotidianas.
Muitos atribuem a palavra conflito como sendo embates, combates, guerras, violências físicas e agressões.
O conceito pode ser ampliado para ruídos de comunicação, controvérsias, pontos de vista diferentes.
E se entendermos o conceito nesta perspectiva mais ampla, percebemos que o conflito é inato ao ser humano e, todos os dias, vivenciamos situações controvertidas, incompatibilidades, diálogos interrompidos, tensões na comunicação, brigas e discussões, que provocam desde situações desagradáveis a resultados desastrosos.
Percebidos assim em seus efeitos, neste viés negativo, conflitos nos causam mal-estar, desconforto, cansaço, estresse e várias sensações ruins, porque associamos a uma experiência difícil e problemática.
Acabam promovendo em nós emoções e sentimentos como frustração, tristeza, nojo, raiva, impotência. Esta é a tempestade perfeita para desenrolar duas reações: ou luta (ataque, reação agressiva) ou fuga (paralisia, subordinação).
Para muitas pessoas, a atitude é evitar o conflito, “engolindo sapo”, escolhendo se manter distante da pessoa ou situação, e “varrer para debaixo do tapete”, acreditando que “o tempo cura tudo”. Todas essas citações em aspas trazem crenças limitantes em relação aos conflitos, muito embasada em maneiras passivas de lidar com desafios.
Muitos gestores não percebem ou fingem que não há problemas interpessoais em suas equipes.
Um dos motivos é porque entendem que essas diferenças pessoais devem ser resolvidas fora do ambiente laboral, mantendo foco única e exclusivamente nas tarefas.
A longo prazo, o problema pode tomar dimensões mais complexas com a atitude omissa do gestor e gerar um verdadeiro embate no local de trabalho ou distanciamento com rompimento total de uma relação, prejudicando as atividades, compromissos e prazos da organização.
Outras pessoas decidem “não levar desaforo para casa”, com reações mais intensas e por vezes desproporcionais aos gatilhos iniciais. Nestas situações, perdem rapidamente o equilíbrio e passam a atacar o suposto “oponente” de maneira desproporcional, “perdendo a razão”, interpretando o outro como um verdadeiro inimigo. Ao recobrar a normalidade, percebe os exageros, sentindo remorso, culpa, vergonha, e os rompantes podem gerar também rompimentos numa relação, ou outras sérias consequências.
Nesta outra polaridade, o clima de reatividade gera insegurança nas relações, inclusive propicia a caracterização de contextos de assédio moral no trabalho.
Um ambiente de muita conflituosidade vem sendo considerado tóxico, e desestimula a criatividade e autonomia dos colaboradores, além de ser fator inclusive de litígios judiciais.
Em um contexto de complexidade das relações humanas, é fundamental desenvolver habilidades e técnicas para lidar com os relacionamentos humanos de forma positiva.
Prevenir significa criar recursos e estratégias para melhor lidar com essa complexidade humana.
A chave para a mudança é compreender que o conflito é uma circunstância neutra, a depender de como escolhemos lidar com ele. Tudo é um processo de escolha: como escolhemos perceber a situação.
O conflito manifesta um sintoma de algo que não está funcionando bem numa relação, apontando muitas vezes uma necessidade não atendida, diferenças entre pontos de vista, interesses aparentemente antagônicos, a partir de uma diversidade de repertórios de vida.
John Paul Lederach (Lederach, 2012), reconhecido internacionalmente como pacificador, possui uma obra em que nos convida a ver o conflito como “uma oportunidade, um dom”. Sustenta que:
(…) ao invés de ver o conflito como ameaça, devemos entendê-lo como uma oportunidade para crescer e aumentar a compreensão sobre nós mesmos, os outros e nossa estrutura social. Os conflitos nos relacionamentos de todos os níveis são o modo que a vida encontrou para nos ajudar a parar, avaliar e prestar atenção. Uma forma de conhecer verdadeiramente nossa condição humana é reconhecer o dom que os conflitos representam em nossa vida. Sem ele a vida apresentaria uma topografia monótona e plana marcada pela mesmice, e os relacionamentos seriam muito superficiais.
O conflito também gera vida: através do conflito nós reagimos, inovamos e mudamos. O conflito pode ser entendido como o motor de mudança, como aquilo que mantém os relacionamentos e as estruturas sociais honestas, vivas e dinamicamente sensíveis às necessidades, aspirações e ao crescimento do ser humano.
Se percebido positivamente, o conflito é oportunidade de mudanças necessárias para retomada da energia e sintonia do relacionamento, ou mesmo transformação desta relação, para gerar maior engajamento e criatividade, sem a necessidade de romper abruptamente a comunicação. Inclusive, pode promover soluções inovadoras e mais adequadas a lidar com o problema.
As crises são momentos de aprendizado e potencial desenvolvimento dos envolvidos.
A partir da mudança de percepção e da construção de significado do conflito, é possível promover um convite ao diálogo autêntico, em que há espaço para uma escuta dos diferentes pontos de vista.
Saber lidar com controvérsias nos promove protagonismo por meio da autodeterminação e autonomia de vontade. Isso acontece quando compreendemos alguns aspectos internos importantes: a percepção ampla da situação conflituosa, identificação de necessidades e interesses, acolhimento de emoções e sentimentos e assertividade.
É um processo gradativo de aprendizagem (humana), em que saímos da total inconsciência e incapacidade, para a consciência acerca dessas adversidades e vamos, por meio de treinamento em novos hábitos, criando as competências e os recursos necessários (capacidades) para superar os desafios nas relações.
Ao mesmo tempo, compreendemos quais conflitos não poderão ser prevenidos, e sim administrados, para escolhermos o meio mais adequado para gerir essas controvérsias (negociação, mediação, conciliação, por exemplo).
O que é gestão de conflitos nas organizações?
A gestão de conflitos envolve práticas de escuta ativa e diálogo das necessidades e interesses que estejam em dissonância, buscando soluções que atendam adequadamente os indivíduos, gerando satisfação e eficiência na transformação das relações.
Esta atividade tem por objetivo prevenir o escalonamento de controvérsias, administrar positivamente as situações conflituosas que existem, além de promover mudanças positivas a partir de soluções criativas e adequadas a cada contexto. Caso já esteja instaurada a discordância, há técnicas e meios de administrar adequadamente cada situação para gerar o consenso e a solução.
Com estas boas práticas de gestão de conflitos, há melhoria da comunicação interna e do clima organizacional, criando um ambiente colaborativo.
A empresa pode desenhar um processo organizado de administração e tratamento dos conflitos da forma mais adequada a cada situação, levando em consideração os níveis de complexidade dos conflitos.
Existem procedimentos que estruturam internamente uma gestão das controvérsias para fomentar o diálogo estratégico.
Em um nível menos complexo, inicia-se com treinamentos em competências e técnicas que envolvam o diálogo e ferramentas de autogestão de conflitos, contemplando líderes e gestores, e, ainda, todos os colaboradores. Nesta etapa, o objetivo é a melhoria da comunicação, incentivando a manifestação da singularidade de cada pessoa que compõe a organização, com sentido, autonomia e autorresponsabilidade.
Pretende-se trabalhar o pertencimento de cada indivíduo neste coletivo, por meio da escuta de todos os envolvidos na tomada de decisão, para o direcionamento das ações cotidianas da empresa. Dessa forma, há o incentivo para que contribuam nos processos produtivos com autonomia, motivação e engajamento.
Em casos de maior complexidade da disputa, a mediação é o meio adequado a lidar com adversidades no ambiente corporativo, proporcionando relações mais duráveis e confiáveis ao longo do tempo.
A mediação é uma forma de resolver conflitos com a intervenção de um terceiro neutro, ou seja, uma pessoa que não conheça previamente os envolvidos e possa manter certo distanciamento para auxiliá-los a retomar o diálogo.
A depender da estrutura da empresa, o mediador pode ser um colaborador interno, ligado aos Recursos Humanos, ou um mediador externo, por intermédio de uma consultoria especializada. Há possibilidades do gestor atuar como mediador, a partir de sua capacitação, em circunstâncias em que não possua envolvimento com o conflito.
Vários modelos podem ser estruturados conforme a necessidade da empresa, sempre pautando a gestão de conflitos nos princípios do diálogo e do protagonismo das pessoas envolvidas.
Quando existe um ambiente com comunicação aberta dentro das organizações, cria-se uma cultura de confiança, em que todos podem colaborar e cooperar na direção de um sentido maior.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Burbridge, A. e. (2012). Gestão de conflitos: Desafio do mundo corporativo. São Paulo: Saraiva.
Lederach, J. P. (2012). Transformação de Conflitos. São Paulo: Palas Athena.
Por Betina Costa, mestranda em Direito com ênfase em Resolução de Conflitos, pela Ambra University. Pós-graduanda em Psicologia Positiva pela PUC/RS. Advogada consensual. Diretora Regional no Piauí do escritório Bayma & Fernandes. Presidente da Comissão de Justiça Restaurativa e Direito Sistêmico da OAB/PI, na atual gestão 2019/2021.
Fonte: Direito Profissional – 31/01/2023
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O sistema multiportas e a pessoa com deficiência

Cerca de 1/4 da população brasileira declara ter algum tipo de deficiência. São esses os dados do último Censo Demográfico divulgado pelo IBGE [1]: aproximadamente 46 milhões de brasileiros (24% da população) reconhecem ter algum grau de dificuldade em pelo menos uma das habilidades investigadas (enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus) ou possuir deficiência mental/intelectual.
Há diversos critérios para definir o conceito de pessoa com deficiência. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15), responsável por reformular a teoria das incapacidades do modelo médico para o modelo social de deficiência, assim o fez:
“Artigo 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” [2].
O que define, portanto, a pessoa com deficiência não é a falta de um membro, tampouco quaisquer das funções ou órgãos do sentido reduzidos. Como já alertava Luiz Alberto David Araujo em sua tese de Doutorado [3]: “O que caracteriza a pessoa com deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade, de estar incluído socialmente. O grau de dificuldade para a inclusão social é que definirá quem é ou não pessoa com deficiência”.
Se a deficiência é um impedimento social tão presente na população brasileira, uma reflexão se impõe: a concepção da chamada Justiça Multiportas inclui essa significante parcela da sociedade ou apenas reforça a barreira que os métodos tradicionais de resolução de conflitos já consagram?
A ideia de Justiça Multiportas (multi-door courthouse ou multi-door system) teve origem nos estudos do professor Frank Sander, da Universidade Harvard. A ideia, em resumo, é que a atividade jurisdicional estatal não pode ser vislumbrada como a única e principal opção das partes para a solução dos litígios [4]. Há, para cada tipo de conflito, uma ou mais formas adequadas de resolução, sendo a jurisdição estatal apenas uma dessas opções.
Com a Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aliado aos avanços promovidos pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC), o direito brasileiro caminha para a construção de um modelo de Sistema multiportas. Outros inúmeros diplomas confirmam esse movimento, a exemplo da Lei nº 9.307/1996 (arbitragem) e da Lei nº 13.140/15 (mediação).
Dentre as vantagens destacadas pela doutrina para esse novo modelo [5], tem-se o maior protagonismo da parte na solução de seu problema, com o consequente maior comprometimento e responsabilização acerca dos resultados; o estimulo à autocomposição; a maior eficiência do Poder Judiciário, porquanto a esse caberia apenas a solução dos casos mais complexos, quando inviável a solução por outros meios ou quando as partes assim o desejassem; e a maior transparência, diante do conhecimento prévio pelas partes acerca dos procedimentos disponíveis para a solução do respectivo conflito.
Há, portanto, um inegável movimento em prol da introdução de novas formas de tratamento dos litígios, que não afastam a jurisdição estatal — como não poderia deixar de sê-lo, diante do artigo 5º, XXXV da Constituição Federal — mas que com ela coexistem, elevando a qualidade das soluções e pluralizando as formas de lidar com a conflituosidade humana.
Isso posto, questiona-se: é possível afirmar que, hoje, o Sistema Multiportas abarca em seu plano de consolidação as pessoas com deficiência? Existe algum preparo do poder público e da iniciativa privada para que pessoas com deficiência visual, auditiva, motora, mental ou intelectual usufruam dos diferentes mecanismos de resolução do conflito? Em caso negativo, é justificável recusar acessibilidade a esses métodos para cerca de 1/4 da população brasileira?
No âmbito do Poder Judiciário, o comando é claro: há que se prover essa integração.
A Resolução nº 401/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [6] dispõe sobre o desenvolvimento de diretrizes de acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência nos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares. Trata, em síntese, da necessária eliminação de barreiras urbanísticas, arquitetônicas, informacionais, atitudinais ou tecnológicas para a garantia dessa igualdade.
Para elucidar o tamanho do desafio, são iniciativas propostas pela Resolução a capacitação de servidores em temas relativos a acolhimento, direitos, atendimento e cotidiano de pessoas com deficiência; a garantia de recursos de tecnologia assistiva, adaptações arquitetônicas e urbanísticas que permitam a acessibilidade; medidas de facilitação ao acesso e à obtenção de informações e certidões, dentre inúmeras outras medidas a serem implementadas.
Ainda no âmbito dos atos normativos editados pelo CNJ, a Resolução nº 332/2020 [7] incentiva a adoção de mecanismos de inteligência artificial e de tecnologias análogas no âmbito judicial, a serem utilizados para a promoção de bem-estar e a prestação jurisdicional equitativa a tal público.
Alinhado às diretrizes acima, o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso (TJ-MT) criou a Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão, cujo objetivo é desenvolver e aprimorar estratégias de acessibilidade, tanto em quesitos estruturais e físicos, quanto em termos de acessibilidade digital.
Dentre as iniciativas de destaque, o Poder Judiciário mato-grossense aderiu a ações de acessibilidade, como o uso da ferramenta VLibras no site institucional do TJ-MT, software que traduz os conteúdos do Portal em tópicos, fazendo a leitura de hiperlinks e textos em Libras. Implantou, ainda, a tradução em Língua Brasileira de Sinais nas sessões on-line de julgamentos da Segunda Instância [8], promoveu audiências de conciliação com o auxílio de tais intérpretes [9] e capacitou servidores em curso de libras [10], sempre visando à inclusão desse público aos diferentes métodos de resolução abarcados pelo Sistema Multiportas.
Fato é que o desafio continua e as deficiências são múltiplas. Exigem mudanças estruturais, seja na própria construção e idealização dos espaços de acesso a tais serviços, seja na constante capacitação de todos que se propõem a intermediar a resolução dos conflitos humanos. Juízes, advogados, promotores, defensores, conciliadores/mediadores, equipe multidisciplinar: todos inclusos.
Não é demais lembrar que o tema da pessoa com deficiência é tão caro ao legislador brasileiro que três dos quatro tratados internacionais com status de emenda constitucional no Brasil permeiam o tema: a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (Convenção de Nova York), o Protocolo Facultativo dessa Convenção e o Tratado de Marraqueche.
Ainda, é ilusório e pouco altruísta pensar que faltam demandas a justificar o investimento. O fato de não sentirmos em nosso cotidiano essa quantidade de pessoas que necessitam do acesso adaptado é menos um sinal de que essas rareiam, e mais um indicativo de que não lhes foram garantidas condições mínimas de conhecimento e acesso a todas essas opções de resolução de conflito disponíveis.
A mudança atitudinal é o alicerce da urgente, ampla e irrestrita acessibilidade das pessoas com deficiência ao Sistema Multiportas. Em tempo: não basta que sejam múltiplas: todas as portas devem ser, igualmente, acessíveis.
[1] Disponível em: Censo 2010 | IBGE. Acesso em: 14/1/2023.
[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 14/1/2023.
[3] ARAUJO, Luiz Alberto David. A Proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 3ª Edição. Brasília: CORDE, 2001. Originalmente apresentada como Tese de Doutorado — Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. Disponível em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/8708>. Acesso em: 14/01/2023.
[4] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Colaborador: Felipe Viana de Araujo Duque. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/dodpedia/detalhes/b9141aff1412dc76340b3822d9ea6c72?palavra-chave=multiportas&criterio-pesquisa=e>. Acesso em: 14/01/2023.
[5] PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Fazenda Pública e Execução. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 118
[6] Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3987>. Acesso em: 14/01/2023.
[7] Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429>. Acesso em: 14/01/2023.
[8] Disponível em: <https://www.tjmt.jus.br/noticias/70466>. Acesso em: 14/01/2023.
[9] Disponível em: < http://www.tjmt.jus.br/noticias/66536#.Y8MPAHbMKUk>. Acesso em: 14/01/2023.
[10] Disponível em: <http://www.tjmt.jus.br/noticias/60203#.Y785OXbMKUk>. Acesso em: 14/01/2023.
Por Fernanda Mayumi Kobayashi, juíza do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso e formada em Mediação de Conflitos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2023, 11h15
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A arbitragem “pegou” e pode salvar o seu negócio

A arbitragem não é um mecanismo novo no país. Desde a época do Brasil Império, já havia a previsão normativa da solução de conflitos por meio de um árbitro, isto é, por um terceiro não pertencente à estrutura jurisdicional do Estado, eleito pelas partes, idôneo e com conhecimento específico sobre a matéria a ser decidida.
Porém, a tradição jurídica e social do país — muito afeita à autoridade estatal — sempre tratou a arbitragem com desconfiança e receio, já que o instituto quebra a ótica do monopólio do “estado-juiz” na solução de conflitos. Isso ajuda a explicar o porquê de, mesmo após a edição da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), no longínquo ano de 1996, o instituto ainda demorou a “pegar” no país.
Sem surpresas, foi sobretudo com o aval de decisões recorrentes das cortes superiores que a arbitragem passou a gozar de segurança jurídica suficiente para permitir sua popularização. Um marco foi a confirmação da constitucionalidade da Lei de Arbitragem, em 2001. Outro exemplo é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que se firmou no sentido de reconhecer que, uma vez escolhida a arbitragem pelas partes, é do próprio árbitro, com primazia sobre o Poder Judiciário, a prerrogativa de deliberar sobre a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem; ou seja, é dele a palavra final para decidir sobre sua própria competência para julgar o caso. Sem essa garantia, que constitui princípio básico da arbitragem em todo o mundo, a autoridade da decisão arbitral seria sempre questionada no Poder Judiciário, perpetuando o conflito cuja resolução rápida e segura as partes confiaram ao procedimento arbitral.
A inclusão de cláusula compromissória de arbitragem passou, então, a dividir espaço com as cláusulas de eleição de foro judicial nos contratos. As câmaras arbitrais proliferaram e ganharam renome. E, hoje, o Brasil está entre os países que mais utilizam a arbitragem no mundo.
As vantagens são claras e justificam a crescente popularização. O procedimento é substancialmente mais rápido, uma vez que anos de contenda judicial se resumem em alguns meses de arbitragem, cuja sentença é final, sem espaço para cadeias infindáveis de recursos. As partes gozam de ampla autonomia e paridade para definirem regras específicas do procedimento arbitral, incluindo o prazo para o proferimento da sentença e realização de atos processuais diversos. A escolha do(s) árbitro(s) pelas partes — sempre guiada pela imparcialidade garantida pela lei e pelo máximo grau de especialização — permite o julgamento da causa por autoridades no assunto, o que torna a arbitragem especialmente valiosa para causas que envolvam questões muito específicas e técnicas, algo inviável de se exigir de um juiz que é chamado a decidir ampla gama de conflitos. Soma-se ainda o sigilo garantido ao procedimento e ao resultado da arbitragem, se assim quiserem as partes.
Portanto, é possível perceber as claras vantagens que arbitragem possibilita na resolução, por exemplo, de conflitos societários, em que uma decisão rápida e sigilosa pode ser a diferença entre a derrocada definitiva da empresa e a sua sobrevivência. Afinal, nenhuma empresa resiste a embates entre os sócios, sobretudo quando se arrastam em processos judiciais mofados, ou quando a publicidade do conflito potencializa os danos causados à sociedade.
A arbitragem também tem espaço na proteção de toda sorte de negócios e contratos que se aproveitam das vantagens do procedimento e contornam suas limitações, que, sim, existem. Um exemplo é que o valor para instauração da arbitragem é usualmente mais custoso do que para o ingresso de uma ação judicial (embora a redução do tempo do processo minore ou suplante essa diferença). Além disso, o juízo arbitral não possui competência para fazer cumprir suas decisões, de modo que o Poder Judiciário ainda é necessário para compelir pessoas e executar, bloquear e transferir bens.
As limitações da arbitragem, porém, não importam na conclusão de que apenas contratos e negócios de valor muito elevado são dignos da cláusula arbitral. Em realidade, é fundamental uma análise conglobante e especializada, por profissionais habilitados, acerca da adequação do uso da arbitragem, a fim de guiar a decisão dos contratantes, possibilitando, ao final, a proteção necessária para a perpetuação e fruição do negócio.
A arbitragem, enfim, “pegou”, e é mais uma ferramenta à disposição da pacificação social e desenvolvimento econômico.
Por Rodrigo Gomes dos Anjos Lima, advogado graduado pela Ufes, associado ao escritório Oliveira Cardoso Advogados e especialista em Direito Ambiental pela UFPR.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2023, 17h49
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Em evento no IAB, coautor da Lei de Arbitragem diz que projeto que muda regras é inconveniente

O coautor da Lei de Arbitragem vigente no Brasil, Pedro Antônio Batista Martins, afirmou que o projeto de lei 3.293/21, que altera regras da legislação atual, é inconveniente e contrário à essência de liberdade que move a arbitragem. Entre outras mudanças, a proposta da deputada federal Margarete Coelho (PP-PI) pretende limitar o número de processos por árbitro e tornar públicos os termos das arbitragens. Os impactos da possível alteração e a relação entre a arbitragem e a insolvência foram debatidos no evento promovido pela Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) nesta sexta-feira (18/11).
A mesa de debate foi conduzida pela presidente da Comissão, Adriana Brasil Guimarães, e contou com a presença do presidente da Comissão de Arbitragem da Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), Joaquim Tavares de Paiva Muniz, e do administrador judicial de falências e recuperação judicial Bruno Rezende. A mediação das discussões foi feita pelo vice-presidente da comissão organizadora, Alexandre Gonçalves, e pela advogada e membro da mesma comissão Raquel Rangel.
O coautor da lei atual não vê motivos para alterar a norma que, segundo ele, “introduziu no Brasil um sistema novo de solução de conflitos”. Para Pedro Batista, é inconveniente ocupar o Congresso Nacional, que tem muitas demandas relevantes, com um projeto que não contribui com a arbitragem. De acordo com o jurista, os advogados e os árbitros aperfeiçoaram o sistema vigente. “O que nós precisamos é fortalecer a autorregulação. Por que mexer em algo que está dando certo para o País?”, questionou. Para Martins, “cabe às Câmaras de Arbitragem a fiscalização do comportamento e do desenvolvimento das ações”. Em consonância, Joaquim Muniz disse que não é papel do Estado interferir no aprimoramento da arbitragem, que é realizado pelos agentes do processo.
“Temos que ter portas de resolução de conflitos para além do Poder Judiciário”, afirmou Pedro Batista. A arbitragem, acredita Muniz, é a solução rápida alternativa ao sistema estatal sobrecarregado. “Como diria Ruy Barbosa, ‘justiça tardia não é justiça’, e por isso a arbitragem é tão popular”. A limitação de 10 processos por árbitro, segundo Muniz, não está respaldada por nenhuma métrica jurídica. Como consequência disso, a própria estrutura de arbitragem poderia ser prejudicada pela ausência de profissionais qualificados dispostos a se dedicar exclusivamente à atividade, já que haveria uma limitação de carga de trabalho e remuneração. Para o advogado, o impedimento de repetição na composição de árbitros em arbitragens diferentes é outro ponto da norma que carece de justificativa.
Segundo Muniz, muitas pessoas escolhem a arbitragem para discutir com sigilo questões sensíveis. Por isso, a publicização dos processos contraria a possibilidade de confidencialidade das arbitragens. “Ao permitir que a sentença seja publicada na integralidade, você simplesmente vai começar a fazer uma prova na arbitragem menos robusta”, avaliou. Para Raquel Rangel, a ausência de propósito claro, por parte da proposta, torna o projeto de lei “nefasto para todos os que trabalham com a arbitragem”. Outra consequência caso o PL seja aprovado, lembrou Adriana Guimarães, seria o impacto na economia brasileira, que afastará a adoção desse método de resolução de conflitos no País. “Se limitarmos a arbitragem da maneira como consta no PL, vamos acabar com a arbitragem no Brasil. E com isso, com certeza as partes vão eleger as sedes das arbitragens em outros países, no exterior, e não mais no Brasil”.
Insolvência – O segundo painel do evento discutiu a relação entre a insolvência – quando o devedor não tem recursos para saldar suas dívidas – e a arbitragem. O mediador do debate, Alexandre Gonçalves, acredita que os assuntos estão relacionados diretamente, já que a arbitragem assumiu um papel relevante como método alternativo de resolução de diferenças e é aplicada no Direito Empresarial. “Considerando a função social desempenhada pela empresa e o consequente interesse público na sua preservação, a insolvência empresarial deve ser analisada em cotejo com diversos outros institutos, sendo importante compreender a coexistência entre a arbitragem, a jurisdição estatal e a jurisdição privada”, afirmou.
Segundo Bruno Rezende, o Brasil está 50% abaixo dos países vizinhos no âmbito da resolução da insolvência. O advogado acredita que o projeto que modifica as regras de arbitragem afeta o debate de inadimplência porque, no ambiente da insolvência, há facilidade de conciliação alternativa: “O administrador judicial deve sempre que possível estimular a mediação, a conciliação e, mais do que isso, os meios alternativos de solução de conflitos. Se tratando de recuperação judicial, é óbvio que os administradores da empresa não ficam despojados de sua atividade”.
Rezende explicou que a mediação está sendo muito utilizada para solucionar problemas de recuperação judicial, o que pode tornar o administrador judicial capaz de trazer para a jurisdição arbitral a solução das questões do processo. “A falência visa a realocação eficiente dos ativos da economia e o retorno do empresário ao empreendedorismo”, afirmou. Por isso, para ele, a solução é aperfeiçoar os mecanismos que tratam do tema: “Devemos trabalhar melhor as falências, dando transparência ao banco de ativos. Não tenho dúvida de que o mercado está ávido para, tendo segurança jurídica e celeridade, investir nos processos”.
Fonte: IAB – Sexta, 18 Novembro 2022 16:32
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Considerações sobre a Lei de Arbitragem no Brasil

Apesar de sensível aparato regulador, é comum a existência de conflitos de interesses que são inerentes à vida em sociedade, o que reclama, de algum modo, a atuação do Estado, a fim de manter a paz social e zelar pela harmonia e cumprimento da ordem jurídica. Tais litígios podem ser resolvidos no modelo heterocompositivo ou autocompositivo. Essa derradeira ocorre quando as próprias partes resolvem seus conflitos. As principais formas de solução de conflitos por tal método, que são: autotutela, conciliação, mediação e transação.
Já heterocomposição é técnica pela qual as partes elegem terceiro para prover a solução do litígio, tendo como principais formas a jurisdição e a arbitragem. E, superando os parâmetros anteriores, a Lei 9.307/1996 que teve sua constitucionalidade questionada junto ao Supremo Tribunal Federal, em incidente vinculado ao processo de homologação de uma sentença arbitral estrangeira proferida em Espanha, por suposta ofensa à garantia de acesso à justiça, prevista no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal brasileira de 1988.
No trâmite do processo foi promulgada a Lei 9.307 em 1996, que passou a dispensar a homologação desse laudo na justiça do país de origem. Em vista disso, o Ministro Moreira Alves, no julgamento do recurso suscitou a questão de constitucionalidade da lei em comento. Eis que fora questionada a constitucionalidade da Lei no Agravo Regimental em Sentença Estrangeira 5.206-7l, o qual, em 10.10.1996, após voto do relator Ministro
Sepúlveda Pertence, requereu a conversão do julgamento em diligência para colher parecer do Ministério Público Federal, a fim de examinar se a lei que passou a disciplinar a arbitragem no Brasil ofenderia ou não o princípio de livre acesso ao Judiciário.
In litteris, eis o parecer do então Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro: “(…) o que o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional estabelece é que a lei não exclui da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Não estabelece que as partes interessadas não excluirão da apreciação judicial suas questões ou conflitos. Não determina que os interessados devem sempre levar ao Judiciário suas demandas. Se se admite como lícita a transação relativamente a direitos substanciais objeto da lide, não se pode considerar violência à Constituição abdicar do direito instrumental de ação através de cláusula compromissória”[1].
E, em se tratando de direitos patrimoniais disponíveis, não somente é lícito e constitucional, mas é também recomendável aos interessados – diante do acúmulo de processos e do formalismo excessivo que têm gerado a lentidão das demandas judiciais – abdicarem do direito ou do poder de ação e buscarem a composição do conflito por meio de sentença arbitral cujos efeitos sejam idênticos àquele das decisões prolatadas pelo Poder Judiciário.
A partir da leitura do voto do Ministro Néri da Silveira, é possível, ainda, vislumbrar outros trechos do parecer acima indicado do Procurador-Geral:
“E quanto ao controle jurisdicional de lesão ou ameaça a direitos, é de se observar que a Lei n.º 9.307/96, na verdade, o prestigia nos seus arts. 6.º, 7.º, 32, 33, 38 e 39, nas hipóteses de recalcitrância em firmar compromisso, nulidade ou invalidade do juízo arbitral e ofensa à ordem jurídica nacional. O legislador ordinário permitiu, de um lado, a pacificação de determinados conflitos de interesses sem a intervenção estatal, mediante compromisso arbitral[2], com nítidas vantagens para os interessados, e, de outro, garantiu o livre acesso ao Poder Judiciário àqueles que tiverem direitos violados por inobservância das regras fixadas para a arbitragem”.
Tal entendimento sagrou-se vencedor, superando os votos em contrário que suscitaram a inconstitucionalidade da lei ora em comento, sob a razão de afrontar a garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Eis que no bojo constitucional vigente há a menção de que a lei não pode excluir da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito, e, portanto, é possível arrematar que nenhuma lei poderá impor a aplicação compulsória  da arbitragem. Mas, não é esse o objetivo da Lei 9.307/1996, já que não impõe a utilização obrigatória do instituto.
Cahali ainda lecionou que a lei não impõe a utilização de arbitragem, mantendo íntegro aos interessados o acesso à jurisdição estatal, porém,  como expressão da vontade e liberdade de contratar, nas questões relativas aos direitos patrimoniais disponíveis, permite que seja eleito o palco arbitral para a solução do conflito.
Conclui-se que a Constituição Federal brasileira vigente não proíbe que as partes contratem formas extrajudiciais de solução de conflitos, não havendo, com isso, uma renúncia abstrata à jurisdição.
Evidentemente, se as partes são livres para transigir e o são para contratar, em face do princípio da autonomia da vontade, podem, igualmente, através da mesma autonomia de vontade poderá decidir pela extinção dos conflitos através da solução arbitral.
Foi oportuna a digressão história realizada pelo Ministro Ilmar Galvão, em seu voto, acerca do mandamento constitucional que fora objeto de discussão, quando da análise da constitucionalidade da Lei de Arbitragem, in litteris: Veja-se, agora, se iniciativa dessa ordem encontra óbice no princípio da garantia do acesso ao judiciário, assim enunciado no inc. XXXV do art. 5.º da Constituição: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Registre-se, por primeiro, ser opinião pacífica na doutrina que a norma  surgida, entre nós, na Carta de 1946 (art. 141, § 3.º) –, constituiu verdadeiro escudo contra eventual reiteração de práticas do Governo Vargas, quando inquéritos policiais e de outra natureza eram instaurados contra pessoas a quem, de ordinário, não se propiciava garantias comezinhas como a do contraditório e a da ampla defesa, pronunciando-se, a final, contra elas, decisões sumárias, finais e impositivas, insuscetíveis de reexame pelo Judiciário.
A norma, assim, não é de ser vista como impositiva do ingresso de pessoas físicas em juízo toda vez que seus direitos subjetivos são afrontados, constituindo antes uma garantia do que uma imposição, consoante ressalta o parecer da douta Procuradoria-Geral da República.
A digressão histórica corroborada pela Ministra Ellen Gracie sobre o dispositivo, in litteris:
“A leitura que faço da garantia enfocada no art. 5.º, XXXV, é de que a inserção da cláusula assecuratória de acesso ao judiciário, em nosso ordenamento constitucional, tem origem e se explica pela necessidade de precatarem-se os direitos dos cidadãos contra a atuação de órgãos administrativos, próprios de regimes autoritários. A arqueologia da garantia da via judiciária leva-nos a verificar que a cláusula sempre teve em mira, preponderantemente, o direito de defesa ante os tribunais, contra atos dos poderes públicos”.
Não se trata de exclusão  do Judiciário brasileiro em face de eventual lesão às partes, pois existe efetiva possibilidade de controle judicial da sentença arbitral em relação à sua validade.
A leitura que faço da garantia enfocada no art. 5.º, XXXV, é de que a inserção da cláusula assecuratória de acesso ao judiciário, em nosso ordenamento constitucional, tem origem e se explica pela necessidade de precatarem-se os direitos dos cidadãos contra a atuação de órgãos administrativos, próprios de regimes autoritários. A arqueologia da garantia da via judiciária leva-nos a verificar que a cláusula sempre teve em mira, preponderantemente, o direito de defesa ante os tribunais, contra atos dos poderes públicos.
O entendimento era o oposto, de que, tendo a legislação permitido a renúncia do direito de ação, sem definição ou indicação de lides determinadas ou determináveis, ainda que meramente possíveis e eventuais, não seria tolerada pelo ordenamento constitucional. E, neste sentido expôs o Ministro Sepúlveda Pertence, in verbis:
Viu-se, com efeito, que o empecilho à incidência, na hipótese, da regra geral do art. 639 CPC, é a impossibilidade, nos termos do dispositivo, de o juiz substituir pela própria a vontade da parte recalcitrante, “regulando matéria estranha ao conteúdo do negócio preliminar” – qual é, em relação à cláusula compromissória, a determinação da lide a ser submetida à arbitragem.
Ora, essa impossibilidade não a pode suprir a lei ordinária, sem ferir a garantia constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CFRB/1988, art. 5.º, XXXV).
Só não a transgride o compromisso, porque, por força dele, são os próprios titulares dos interesses objeto de uma lide já concretizada que, podendo submetê-la à jurisdição estatal, consentem em renunciar à via judicial e optar pela alternativa da arbitragem para solucioná-la. E só para isso.
Na cláusula compromissória, entretanto, o objeto dessa opção, posto que consensual, não são lides já determinadas e concretizadas, como se dá no compromisso: serão lides futuras e eventuais, de contornos indefinidos; quando muito, na expressão de Carnelutti, lides determináveis pela referência ao contrato de cuja execução possam vir a surgir.
A renúncia, com força de definitiva, que aí se divisasse à via judicial já não se legitimaria por derivação da disponibilidade do objeto do litígio, que pressupõe a sua determinação, mas, ao contrário, consubstanciaria renúncia genérica, de objeto indefinido, à garantia constitucional de acesso à jurisdição, cuja validade os princípios repelem.
Sendo a vontade da parte, manifestada na cláusula compromissória, insuficiente – dada a indeterminação do seu objeto – e, pois, diversa da necessária a compor o consenso exigido à formação do compromisso, permitir o suprimento judicial seria admitir a instituição de um juízo arbitral com dispensa da vontade bilateral dos litigantes, que, só ela, lhe pode emprestar legitimidade constitucional: entendo nesse sentido a lição de Pontes de Miranda de que fere o princípio constitucional invocado – hoje, art. 5.º, XXXV, da Constituição – atribuir, ao compromisso que assim se formasse por provimento judicial substitutivo do assentimento de uma das partes “eficácia fora do que é a vontade dos figurantes em se submeterem”.
Não posso fugir, desse modo, à declaração da inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 6.º e do art. 7.º da Lei de Arbitragem e, em consequência, dos outros dispositivos que delas deriva, isto é, no art. 41, da nova redação dada aos arts., 267, VII, e 301, IX, do CPC (que estendem a qualquer modalidade de convenção de arbitragem – e, pois, à hipótese de simples cláusula compromissória – a força impeditiva da constituição ou da continuidade do processo judicial sobre a mesma lide objeto do acordo arbitral), o art. 42, que acrescenta um novo inciso, n. VI, ao art. 520 CPC para incluir no rol dos casos de apelação com efeito só devolutivo, o da interposta contra a sentença “que julgar procedente o pedido de instituição de arbitragem”.
A final decisão judicial foi prolatada em dezembro de 2001 e, apesar de todos os ministros terem votado pelo deferimento do recurso, isto é, no sentido de homologar o laudo arbitral espanhol no Brasil, deu-se discordância sobre a constitucionalidade do diploma legal, com a maioria de votos pela constitucionalidade.
Então, os Ministros Sepúlveda Pertence, relator do recurso, bem como Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves entenderam que a Lei de Arbitragem seria inconstitucional por criar obstáculos ao acesso ao  Judiciário, tido como direito fundamental previsto na Lex Magna vigente.
Já, no sentido oposto, votaram os Ministros Maurício Corrêa, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Celso de Mello, Carlos Velloso, Nelson Jobim e Ilmar Galvão não vislumbraram ofensas à Constituição Federal brasileira e, ainda, consideraram o avanço trazido pela lei, concluindo que a opção voluntária das partes ao procedimento arbitral não  ofende o princípio constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional pelo Judiciário.
Não obstante as discussões ocorridas no STF sobre a constitucionalidade ou não da Lei da Arbitragem, Luiz Guilherme Marinoni afirma que tal questão, fora, realmente desvirtuada, não se podendo dizer que a atividade do árbitro[3] tem natureza jurisdicional, embora sua escolha não ofenda à Constituição, já que jurisdição só pode ser exercida por pessoa investida na qualidade de juiz, nos termos constitucionais vigentes.
O ilustra doutrinador argumento que a referida confusão oriunda dos debates da Suprema Corte decorrente de uma primária falta de percepção da essência da jurisdição e do fundamento da arbitragem.
A crítica feita, literalmente: Afirmou-se, logo após a publicação da referida lei, que não é possível excluir do Poder Judiciário o julgamento de um conflito e, portanto, que tal lei era inconstitucional. Em resposta, foi dito que a atividade do árbitro também é jurisdicional e, assim, que as dimensões da jurisdição teriam sido ampliadas, o que daria legitimidade constitucional ao julgamento do árbitro. (…)
A discussão em torno da constitucionalidade da arbitragem – isto é, da ideia de excluir o Judiciário do julgamento dos conflitos levados ao árbitro – foi completamente desvirtuada, uma vez que a filosofia da arbitragem se relaciona exclusivamente com a questão da autonomia da vontade, sendo correto se dizer que a Lei da Arbitragem teve apenas o propósito de regular uma forma de manifestação da vontade, o que nada tem a ver com as essências da jurisdição e da arbitragem.
Frise-se que a Lei n.º 9.307/96 foi tida como constitucional pela Suprema Corte brasileira, após intensos debates, ganhando credibilidade nos últimos anos pela solução rápida e informal dos litígios e vencendo uma resistência histórica provocada pelos empecilhos criados pelo Código Civil de 1916, seguido pelo Código de Processo Civil de 1939 e aquele de 1973.
Reconhecer a constitucionalidade da Lei n.º 9.307/96 certamente foi um grande avanço para o instituto no ordenamento jurídico brasileiro, eis que colocou o Brasil em vantagem no cenário internacional da arbitragem, que cada vez mais ganha espaço na solução adequada e alternativa de certos conflitos.
Na ausência de uma legislação sobre o tema, ter-se-ia um Judiciário mais lento e precário do que aquele que se tem atualmente, abarrotada de demandas que poderiam ser resolvidas de forma rápida e eficaz, com uma abordagem diversa, hodiernamente, delineada pela arbitragem.
Afora isto, colocaria o Brasil em uma situação de inferioridade nas relações internacionais, amplamente, dinamizadas pela globalização econômica e, que, por essa razão, exigem celeridade na solução das controvérsias eventualmente existentes.
Espera-se que no futuro, em breve, a arbitragem não seja apenas uma solução adequada para resolução de litígios, mas reduza amplamente a sobrecarga imposta ao Judiciário e permita, assim, a verdadeira concretização do acesso à justiça, direito fundamental garantido na Constituição Federal brasileira.
Explanando-se sobre a arbitragem pela sua acepção e os conceitos doutrinários relevantes, bem como, definir natureza jurídica em sentido estrito, além de outros elementos correlatos. A natureza jurídica, seja em concreto ou abstrato é buscar sua origem e função no direito.
Para De Plácido e Silva a natureza jurídica é a matéria de que compõe a própria coisa, é sua compleição.
Ao se pronunciar sobre a natureza jurídica, classificamos e sistematizamos dentro de universo maior, na busca de seu gênero, procurando um encaixe entre conceitos, funções, tipos, classes e, etc. A arbitragem é ato, um negócio jurídico ou um contrato onde exalam as características peculiares que tanto o direito precisa para sua devida regulação.
A natureza jurídica da arbitragem ainda é assunto de polêmica na doutrina pátria, como dito alhures, uma vez que o tema se cerca de elementos caracterizadores ecléticos tanto do direito privado quanto público. Francisco Cahali, no entanto, afirma que a polêmica teria sido solucionada com a Lei n.º 9.307/96, que deu nova roupagem à arbitragem no Brasil.
Essas divergências doutrinárias, no entanto, não são privilégio brasileiro, já que, segundo aponta Ricardo Ranzolin, essa contenda foi herdada da doutrina italiana, onde os debates são, de igual modo, arrebatadores.
As teorias acerca do assunto são, basicamente, quatro, quais sejam: publicista, privatista, híbrida e autônoma, todas as quais serão abordadas a seguir.
Uma das correntes teóricas que externam a classificação do instituto da arbitragem é a publicista ou jurisdicionalista, levada à frente por Ludovico Mortara, segundo destacado por Luiz Guilherme Marinoni.
Referido como “(…) quello che viene considerato il massimo exponente della corrente c.d. giurisdizionale dell´arbitrato”, conforme apresenta Ranzolin.
 O autor aponta, ainda, que, no Brasil, a corrente é defendida por Carlos Alberto Carmona, Nelson Nery Júnior, Humberto Theodoro Júnior, entre outros.
Esta corrente sustenta que a arbitragem, representada em seu maior ícone pelo árbitro, tem natureza jurisdicional, e sua existência é proclamada pelo Estado, que lhe atribui legalmente poderes para resolver os conflitos que lhes são submetidos. A arbitragem teria o reconhecimento de jurisdição de caráter público e de forma extraordinária.
Lembremos, portanto, que a arbitragem somente existe porque assim o Estado permitiu, criando, controlando e disciplinando tal atividade, sendo o árbitro uma persona autorizada pelo Poder Público a realizá-la com o fito de resolver o conflito que lhe foi posto pelas partes que o escolheram especificamente para tanto, enquanto  o juiz se diferencia deste pelo fato de ser um agente escolhido pelo Estado e, não por particulares, além, do rito processual que lhe é inerente.
Outro adepto da corrente publicista é Nelson Nery Junior que afirma com firmeza que:
A natureza jurídica da arbitragem é de jurisdição. O árbitro exerce jurisdição porque aplica o direito ao caso concreto e coloca fim à lide que existe entre as partes. A arbitragem é instrumento de pacificação social. Sua decisão é exteriorizada por meio de sentença, que tem qualidade de título executivo judicial, não havendo necessidade de ser homologada pela jurisdição estatal. A execução da sentença arbitral é aparelhada por título judicial (…).
Para a corrente publicista, o artigo 18 da Lei n.º 9.307/96 é claro ao afirmar que o árbitro é juiz de fato e de direito e que tal posição, além de lhe conferir um múnus publicum,  por si só, sustenta de forma significativa os demais argumentos dessa vertente.
Também corrobora a visão pública da natureza jurídica da arbitragem é a consideração de título executivo judicial prevista no Código Fux, em seu artigo 515, inciso VII.
Apesar da corrente publicista ter muito destaque diante das demais teorias, estamos longe de pacificação quanto à natureza jurídica definitiva da arbitragem. Pois não pode ser tida como jurisdicional ao se ter como alicerce os conceitos de jurisdição comumente adotados, o que não lhe retira, entretanto, a observância de certos conceitos que orientam a atividade jurisdicional, como, por exemplo o princípio do devido processo legal.
A corrente privatista que mira a autonomia da vontade tem como crucial virtude valorizar o aspecto negocial humano, a corrente contratualista ou privatista que teve como nomes célebres Giuseppe Chiovenda, Salvatore Satta que enxerga na arbitragem o reflexo do pacta sunt servanda.
Juristas como Eros Grau e o saudoso Teori Zavascki já prestigiaram posicionamentos que consideravam a natureza contratual da arbitragem, ou ao menos, rejeitavam a sua natureza jurisdicional. De acordo com os privatistas, os contratos pactuados entre as partes devem ser respeitados e cumpridos, e a arbitragem nada mais é do  que pacto contratual assumido por pessoas capazes, que podem, em algum momento, divergir sobre suas cláusulas, submetendo-se, a posteriori e por livre vontade às suas regras.
Igualmente, percebe-se que a autonomia da vontade é potencializada ao seu máximo e, os exemplos esclarecedores são a escolha do direito material e processual, até o modo como o mérito será analisado, se por equidade ou por  direito. A fora isso, as partes poderão ainda optar pelo uso dos costumes, dos princípios gerais do direito ou  nas regras internacionais de direito.
Os contratualistas afirmam que a arbitragem não pode ser entendida como de natureza pública, porque sua sentença, em verdade, é corolário do que foi anteriormente pactuado, pois o Estado não tem sobre esta ingerência, o que as partes acordaram, desde que esteja dentro dos ditames legais. A atribuição do árbitro para decidir, nada mais seria, do de dar cumprimento ao contratado.
Seguindo a linha exposta, os privatistas se apegam ao fato de que a sentença não tem força coercitiva autônoma, isto é, se a parte desfavorecida pela sentença se recusar a cumpri-la é necessária a busca pelo judiciário para seu cumprimento. Não existe fase de execução de sentença, mas somente a sua prolação e entrega às partes.
Quanto à qualidade da decisão arbitral, o árbitro escolhido estaria sempre tecnicamente mais bem preparado do que o juiz de investidura, pois possuiria conhecimento específico e apurado em sua respectiva área de formação, o que, em tese, dispensaria auxílio técnico ou pericial em geral.
Cumpre lembrar que, para cada caso levado à arbitragem, é possível que haja regularmente árbitros especialistas no assunto em litígio, cabendo somente às partes decidirem se querem quaisquer deles.
Além do que foi dito, a arbitragem tem natureza privada pelo fato do árbitro não possuir a investidura dos juízes togados. Logo, não sendo membro do Poder Judiciário, jamais sua função teria caráter público, uma vez que a entrada na esfera arbitral desde o pacto contratual estipulado pelas partes, seja por cláusula compromissória, seja por compromisso arbitral, reflete a hegemonia da autonomia da vontade em sua forma mais primitiva.
De fato, os argumentos privatistas perderam espaço com a Lei 9.307/1996, a qual teria adotado, aparentemente, a teoria jurisdicional da arbitragem. Pois, antes do referido diploma legal, essa  teoria era mais latente pelo fato da sentença arbitral se aperfeiçoar através de sua homologação pelo Poder Judiciário, e ainda assim havia vozes a sustentar a natureza jurisdicional da arbitragem.
Muitos doutrinadores e defensores da teoria sustentam que a arbitragem continua marcada pela autonomia da vontade, na fase antecedente, pelo contrato, e na consequente, pela solução adequada do conflito, no limite do que fora contratado.
Sendo tão notório o confronto entre as correntes publicistas e as privatistas, tenta-se justificar a natureza jurídica da arbitragem como sendo mista, híbrida ou intermediária, ou conciliatória conforme propôs Francesco Carnelutti que uniu as características mais marcantes das duas frentes, para que a terceira proposta seja uma doutrina abalizada.
Essa corrente aduz que a arbitragem realmente tem raízes na autonomia privada ou vontade das partes e que, após a convergência de seus respectivos objetivos, que antes eram individualizados, juntam-se e se entregam à sorte da decisão arbitral.
Também afirma que, apesar da autonomia negocial reger o procedimento arbitral, não se separa do caráter público de jurisdicionalidade no momento último de seu atuar, ou seja, o da sentença.
Assim, a arbitragem, nesse aspecto, teria no mínimo dois momentos de relevo: um inicial de caráter privado, por ajuste das partes, e outro final no qual prepondera o caráter público da sentença arbitral. É certo também que durante todo o caminho percorrido pelo procedimento arbitral aparecem elementos complementares com escopo privado e público.
Essa mescla de valores não pode ser dissociada da arbitragem, já que na verdade ela possui fortes tendências, tanto de caráter privado, sobretudo no aspecto negocial, quanto de caráter público, uma vez que obteve do Estado sua certidão de nascimento, por assim dizer.
A ideia sobre a arbitragem ser híbrida ganha espaço na doutrina especializada, que vem admitindo e adequando esse instrumento de solução de conflito às correntes publicista e privatista. Não há como negar o olhar atento dessa teoria que reúne os pontos mais relevantes das outras duas já citadas. De um lado, admite-se a autonomia da vontade para a submissão da arbitragem, e de outro, não se exclui a força jurisdicional pela legalidade do procedimento e execução das decisões proferidas em sua sede.
Na doutrina nacional, Alexandre Freitas Câmara abraça a referida teoria, conforme se depreende da leitura de suas lições.
A ação foi ajuizada em 1995, sentença estrangeira 5.206-7 em que foram partes MBV Commercial and Export Management Establishment e Resil Indústria e Comércio Ltda., a empresa estrangeira que pretendia homologar uma laudo de sentença arbitral dada no Reino da Espanha, para que tivesse efeitos no Brasil, o que inicialmente fora indeferido.
A corrente autonomista negando todas as correntes anteriores,  uma pequena parcela da doutrina passou a pregar uma natureza jurídica diferente para a arbitragem.
Trata-se de  ver o procedimento arbitral, não como inserto na dicotomia entre o público ou privado, mas ao contrário, como um procedimento com identidade própria que independe das classificações do direito privado ou do império do poder público, desvinculado de qualquer sistema jurídico existente. Seria algo em torno da natureza estritamente processual. É dizer que a arbitragem nem é contratual nem jurisdicional, mas somente arbitragem.
Dessa forma não existiria a dualidade público-privada, mas um trinômio que incluiria a arbitragem com uma natureza própria e exclusiva, que não se confundiria com nenhuma outra natureza.
Essa teoria ganha espaço no cenário internacional, em que há total liberdade de contratar, com independência à ordem local de uma ou outra. parte, tratando o instituto como soberano, já que a arbitragem pode ser retirada de qualquer ordenamento. Afirma, ainda, que “cria-se, por essa teoria, uma jurisdição própria, independente e diversa da jurisdição que integra um sistema jurídico”.
Em decorrência das teorias acima descritas, pode-se afirmar que a arbitragem não é instituto novo, pelo contrário, é de longa data sua utilização e a natureza jurídica pode variar no tempo e no espaço
Existem relatos de sua utilização na Antiguidade, por exemplo, com o Código de Hamurabi[4] onde qualquer pessoa podia se socorrer do rei para dirimir seus litígios; na Grécia Antiga onde os litigantes escolhiam o árbitro e a pretensa sentença era afixada nos templos espalhados pela cidade como forma de dar publicidade; e na Roma antiga que também tinha a figura de um árbitro escolhido pelas partes que julgava de modo muito célere as contendas.
Na América do Sul, o sistema argentino de modo similar ao brasileiro, permite que uma das partes procure o judiciário caso a outra negue submissão à arbitragem mesmo depois de assinar a cláusula arbitral. Neste caso, o juiz suprirá a negativa do dissidente e o forçará perante o procedimento arbitral.
Já o México, a Venezuela, o Equador e o Chile utilizam mecanismos de conciliação entre contribuintes e fisco. Carmona comenta que a Itália, desde 1993 se ajustou às convenções de Genebra e Estrasburgo com o fito de uniformizar sua legislação arbitral interna.
No restante da Europa e Ásia diversos países se utilizam da arbitragem buscando uma solução rápida, técnica e confiável, como bem se espera de toda a arbitragem.
Vale lembrar que se está falando tanto da legislação nativa quanto da adesão a convenções internacionais sobre a matéria. As diferenças giram em torno somente de poucos institutos frente ao bojo procedimental a que se tem acesso.
A arbitragem também pode ser utilizada para conflitos na esfera consumerista e para os tribunais terem força coercitiva para executar suas decisões, como ocorre em Portugal, mas não ocorre na imensa maioria dos países a exemplo do Brasil, cujo árbitro não tem força para executar a sentença, mas somente de entregá-la como título executivo judicial.
No ordenamento jurídico brasileiro há forte tendência em se confiar cada vez mais nas decisões arbitrais pela especificidade e qualificação dos árbitros em lidar com causas complexas, o que não acontece no judiciário que precisa buscar auxílio técnico especializado fora do âmbito dos tribunais, confirmando mais uma vez que a arbitragem ocupa um importante papel na solução de litígios.
A arbitrabilidade é a “condição essencial para que um determinado conflito seja submetido à arbitragem”, e a “possibilidade de um litígio ser submetido a arbitragem voluntária (…) tendo em conta não só a natureza do objecto do litígio, como também a qualidade das partes”.
Nesse ponto, destaca-se a doutrina de Carmen Tibúrcio, a seguir transcrita: Denomina-se arbitrabilidade a viabilidade jurídica de submeter determinada controvérsia à arbitragem. O tema é relevante porque nem todas as partes podem se vincular à arbitragem e, além disso, não são todas as questões que podem ser apreciadas em juízos arbitrais. Dizer que o litígio não é arbitrável significa que não pode ser solucionado por tribunal arbitral, de modo que a arbitrabilidade é uma condição de validade da convenção de arbitragem e, consequentemente, da competência dos árbitros.
O artigo 1.º, da Lei n.º 9.307/96, prevê, que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
Salienta-se que os requisitos são legais, e não ajustados pelas partes entre si. Logo, a arbitrabilidade não se confunde com a convenção arbitral, pois esta resulta da vontade das partes, enquanto aquela deriva de norma legal.
A Lei n.º 9.307/96 define os limites da esfera de liberdade das partes para que possam adequar o procedimento arbitral aos seus interesses[5].
A arbitrabilidade subjetiva refere-se à capacidade das partes, isto é, à aptidão de serem titulares de direitos e deveres, a teor do art. 1.º, do Código Civil. Assinala-se, no entanto, a diferença entre titularidade e exercício do direito.
O Código Civil brasileiro estabelece algumas restrições ao exercício em razão da idade, da falta de discernimento por problemas mentais ou vícios e da prodigalidade, consoante arts. 3.º e 4.º, do referido Código. Nos casos de incapacidade relativa ou absoluta, o exercício dos direitos está condicionado à assistência ou representação, respectivamente.
Na lição de Cesar A. Guimarães Pereira, “discute-se se o incapaz pode ser representado ou assistido na celebração da convenção de arbitragem e na condução da arbitragem em si, tal como ocorre perante o Poder Judiciário”.
A doutrina diverge nesse ponto, razão pela qual “não se pode afirmar com segurança que será reconhecida como válida uma arbitragem envolvendo incapaz, ainda que representado ou assistido”.
A arbitrabilidade subjetiva (ratione personae) verifica a possibilidade de as partes submeterem-se ao juízo arbitral e está intrinsicamente relacionada à autonomia da vontade das partes, o que restringe o uso da arbitragem a um determinado grupo de pessoas. Pelo art. 1.º, da Lei n.º 9.307/96, somente pessoas capazes de contratar poderão submeter-se à arbitragem.
Conforme a doutrina de Carmen Tibúrcio, “a ratio da norma é autoevidente: a opção pelo juízo arbitral não se presume, nem pode ser imposta, devendo decorrer da vontade expressa das partes, formalizada por escrito”.
Desse modo, podem submeter-se à arbitragem pessoas naturais ou jurídicas, de direito privado ou de direito público. As entidades integrantes da Administração Pública direta ou indireta, por terem capacidade de contratar, atendem à exigência da Lei n.º 9.307/96 para submeter litígios à arbitragem.
A arbitrabilidade objetiva (ratione materiae), prevista na parte final do art. 1.º, da Lei n.º 9.307/96, diz respeito à matéria objeto do litígio a ser submetido à arbitragem. A lei apenas admite a arbitragem “para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Portanto, em cada caso, deve-se realizar uma análise do direito em discussão quanto à sua patrimonialidade e disponibilidade.
Cumpre esclarecer que os direitos patrimoniais são aqueles que têm expressão pecuniária, em contraposição aos direitos não patrimoniais, que se referem aos direitos da personalidade e ao estado da pessoa. Entretanto, é bom ressaltar a possibilidade de apreciação em juízo arbitral de aspectos patrimoniais de direitos da personalidade ou outros que tenham um núcleo não patrimonial.
“É o que ocorre com a ação civil derivada de ilícitos penais ou a reparação por uso indevido da imagem, que podem ser resolvidas por arbitragem se houver convenção das partes nesse sentido”.
Além de ser patrimonial, exige-se do direito a ser submetido ao procedimento arbitral que seja também disponível, “a disponibilidade do direito se refere à possibilidade de seu titular ceder, de forma gratuita ou onerosa, (…) sem qualquer restrição”. Trata-se de direitos sujeitos ao poder de autorregulamentação das partes e, por isso, passíveis de negociação.
Existe uma dissonância entre doutrina e jurisprudência no que tange ao conceito do que seriam direitos disponíveis causando, por óbvio, um impacto jurisprudencial acerca das arbitrabilidades objetiva e subjetiva.
Não obstante a doutrina se manifestar de modo uníssono em muitas situações em que se discute se é possível ou não determinada matéria ser objeto do procedimento arbitral ou se determinado sujeito pode ser parte dele, a jurisprudência se mostra ainda variável em diversas decisões emanadas pelos Tribunais do país.
Como exemplos de decisões polêmicas versando sobre a arbitrabilidade objetiva, o TCU em 2008, no Acórdão n.º 391, decidiu que: inexistindo autorização legislativa para que determinada autarquia federal realizasse a opção de escolher a via arbitral para dirimir seu conflito estaria dispondo de interesse público, que é, por si só, indisponível e, que por isso, não poderia ter como objeto de arbitragem tal direito.
Não obstante ao julgado do TCU, o STJ no Mandado de Segurança n.º 11308/DF, decidiu de modo contrário, isto é, permitindo que sem autorização legislativa a Administração Pública pudesse optar pelo procedimento arbitral justamente porque a natureza disponível da relação contratual em discussão assim permitia a utilização da arbitragem.
Nota-se que as decisões supra comentadas versam sobre a arbitrabilidade objetiva, perfeitamente aclarada pelos direitos disponíveis ou indisponíveis envolvidos no litígio, contudo, dependendo da teoria adotada em torno do que seria direito disponível, há um reflexo direto e imediato na capacidade das partes envolvidas na arbitragem e, portanto, tema da arbitrabilidade subjetiva, impedindo que determinado sujeito seja parte no procedimento arbitral.
No dia 27/05/2015, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei n°. 13.129/2015, a qual dispõe sobre o procedimento da Arbitragem, alterando e revogando dispositivos da Lei n°. 9.307/1996 (Lei de Arbitragem).
A Lei n°. 13.129/2015 entrou em vigor no dia 26/07/2015 e tem como objetivo: ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem; dispor sobre a escolha dos árbitros; dispor sobre a interrupção da prescrição, pela instituição da arbitragem; dispor sobre a concessão de tutelas cautelares e de urgência nos casos de arbitragem; dispor sobre carta e sentença arbitral.
Cumpre ressaltar, que muitas das mudanças, trazidas pela nova Lei de Arbitragem, já estavam sendo adotadas na prática, seja pelo fato de se tratar de posicionamentos já seguidos pela maioria das Câmaras Arbitrais, seja por se referirem às regras já previstas, e que vieram, através da nova Lei, a ser mais bem definidas. Ou seja, a alteração da lei, positivou algumas questões, que na prática da arbitragem, já estavam sedimentadas e outras que ainda eram objeto de divergência; porém as inovações foram poucas.
Cabe destacar, a menção expressa trazida pela nova lei, sobre a possibilidade de a Administração Pública valer-se da arbitragem, nas hipóteses em que a lide envolver conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
Há alguns anos, se tem introduzido a possibilidade de arbitragem em contratos administrativos. Como exemplos, podemos citar a Lei n.º 11.079/2004, que previu expressamente que a possibilidade de instituição de arbitragem nos contratos de parceria público-privada (art. 11, III); a Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações), a Lei 9.478/97 (Lei de Petróleo e Gás), a Lei nº 10.233/ 2001 (Lei de Transportes Aquaviários e Terrestres), a Lei nº 10.438/2002 (Lei do Setor Elétrico), a Lei nº 11.196/2005 (Lei de Incentivos Fiscais à Pesquisa e Desenvolvimento da Inovação Tecnológica), Lei nº 11.909/2009 (Lei de Transporte de Gás Natural), entre outras. Mesmo assim, estas eram previsões específicas e que encontravam ainda resistência por parte dos administrativistas mais conservadores.
Assim, a Lei n.º 13.129/2015, em comento, ao prever, de forma genérica, a possibilidade de a Administração Pública valer-se da arbitragem quando a lide versar sobre direitos disponíveis, acabou com a dúvida a respeito.
Além disso, destaca-se a alteração promovida na Lei n°. 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), permitindo que o procedimento arbitral seja previsto no próprio estatuto social, para dirimir conflitos societários, ressalvando apenas, que deverá ser observado o quórum de metade dos acionistas com direito a voto, para inserção da convenção de arbitragem no estatuto, salvo disposição em contrário prevista no próprio estatuto.
Questionamos, quais as principais vantagens da arbitragem em comparação ao processo judicial.?
 – Celeridade e Informalidade: O procedimento arbitral é mais rápido e menos formal, diminuindo o desgaste e a ansiedade gerados pela morosidade judiciária.
– Flexibilidade: As audiências podem ser marcadas em horários e locais que melhor convier às partes.
– Segurança: O procedimento arbitral obedece aos mesmos princípios de neutralidade, confiabilidade e imparcialidade do procedimento judicial.
– Especialização: Melhor qualidade da decisão, já que se pode nomear um especialista na matéria objeto do litígio como árbitro, o que evita, muitas vezes, gastos extras com perícias.
– Autonomia de vontade das partes: As partes têm maior autonomia, pois podem escolher as regras de direito material e processual a serem aplicadas no procedimento, ou a entidade especializada que ficará encarregada da administração da arbitragem.
– Sigilo: Não há, na arbitragem, a publicidade típica dos procedimentos instaurados perante o Poder Judiciário, resguardando as partes de exposição perante o público e a mídia.
– Melhor relação custo-benefício: Em virtude da rapidez na resolução do conflito, os custos indiretos decorrentes da demora e da insegurança são minimizados.
– Preservação do relacionamento entre as partes: Por ser a arbitragem uma opção feita pelas próprias partes, de comum acordo, cria-se uma atmosfera favorável à mútua cooperação.
– Menor resistência ao cumprimento da decisão: Existe maior adesão das partes à sentença arbitral, já que proferida por um árbitro de sua confiança e de acordo com um procedimento por elas escolhido.
– Pronta e fácil exequibilidade: Por ser considerada título executivo judicial, a sentença arbitral tem natureza jurídica idêntica à da decisão judicial, podendo ser imediatamente executada em caso de descumprimento, não estando sujeita a recursos ou a homologação pelo Poder Judiciário.
As principais inovações trazidas à Lei da Arbitragem em razão do CPC de 2015 foram:
  – Desnecessidade de homologação judicial da decisão arbitral, transformando o pronunciamento arbitral em verdadeira sentença (Título Executivo Judicial).
– Reconhecimento da força da cláusula compromissória para obrigar as partes à arbitragem, o que impede a frustração da instauração do procedimento arbitral em virtude da resistência unilateral de um dos contratantes.
 – Autonomia da cláusula compromissória em relação ao contrato em que estiver inserida, possibilitando a arbitragem mesmo que o contrato seja considerado nulo.
 – Maior celeridade do procedimento arbitral e maior eficácia dos resultados práticos.
Historicamente, o ordenamento jurídico pátrio deu relevante passo em direção ao acesso à justiça em 1950, com sanção da Lei 1.060, ainda hoje vigente, que estabelece as normas de concessão de assistência judiciária aos necessitados.
Com o advento da CFRB de 1988, s importantes anos subsequentes se destinaram a conferir a concretude ao novo pensamento jurídico não apenas em face do direito positivo, codificação, mas também na jurisprudência onde se privilegia a dignidade da pessoa humana.
Com a consolidação da redemocratização do Estado de Direito, novos movimentos se expressaram clamando por uma Justiça mais acessível, célere, efetiva e capaz de atender as necessidades de todos os segmentos sociais, com isso obtivemos o fortalecimento da cidadania e ampliação do acesso à justiça para auxiliar os cidadãos na concretização de seus direitos e na promoção da pacificação social.
Ainda com o objetivo de promover a pacificação social veio a arbitragem como forma especial de resolução de conflitos, sendo a técnica judicial mais utilizada fora da esfera do Judiciário e, sua tônica está em deixar o extremo formalismo da justiça comum, que na maioria das vezes, é muito complexo e exagerado.
Não é novidade a necessidade de reestruturação do sistema de administração e de gestão da justiça, para além do Judiciário, de forma a fomentar maior efetividade dos direitos, reconhecida como fator de desenvolvimento econômico e social, pois, além da celeridade, custos dos procedimentos fora da esfera judicial, geralmente, é mais reduzido.
Confirma, assim, a arbitragem a tendência  contemporânea de desjudicialziação especialmente na execução civil, como temos em França, Portugal e Espanha.
No relatório “Justiça em Números”, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indica essa situação. No relatório de 2020, tendo por base os números de 2019, isso não se alterou: dos 77 milhões de processos pendentes, mais da metade (exatos 55,8%) refere-se à fase de execução. Ou seja, são aproximados 42 milhões de processos de natureza executiva (fundadas em título judicial – isto é, em fase de cumprimento de sentença –, ou calcadas em título executivo extrajudicial).
Além do número impressionante de processos dessa natureza, chama a atenção também o longo trâmite das execuções. Urge, portanto, minimizar o problema da crise da adequada prestação da tutela jurisdicional estatal, afinal, além de cláusula pétrea (art. 5º, LXXVIII, CF (LGL\1988\3)),a obtenção da resolução de conflitos em tempo razoável – incluindo o resultado prático da satisfatividade – é também norma fundamental do direito processual civil (conforme dispõe o art. 4º do CPC/2015 (LGL\2015\1656)).
Referências
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Notas:
[1] A cláusula compromissória é a convenção escrita através da qual as partes comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a uma relação jurídica específica. Com a estipulação da cláusula compromissória, as partes contratantes elegem a arbitragem para resolver possível litígio proveniente da relação jurídica especificada, antes do surgimento da controvérsia, afastando, desde logo, a competência do Poder Judiciário. É essencial que a cláusula compromissória determine a forma de nomeação dos árbitros. Desta forma, garante-se que a vontade das partes manifestada no contrato será observada.
[2] O compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial. Com o compromisso arbitral, as partes, de comum acordo, optam pelo uso da arbitragem para resolução da controvérsia após o seu surgimento, mesmo que não exista cláusula compromissória no contrato, ou que o litígio não possua relação com o mesmo. O principal objetivo do compromisso é estabelecer as condições do procedimento arbitral e dar as diretrizes para o seu desenvolvimento, até a decisão final.
[3] Pode ser Árbitro qualquer pessoa capaz (maior de 18 anos, que não tenha sido interditado judicialmente de acordo com as regras do Código Civil de 2002) que seja escolhida pelas partes em conflito, desde que não tenha, por qualquer motivo, interesse no julgamento do litígio em favor de uma delas, observados os impedimentos legais aplicados aos juízes estatais. O árbitro será indicado pelas próprias partes, sendo que, em caso de divergência quanto à sua escolha, esta função poderá ser exercida por um terceiro. Em caso de escolha de mais de um árbitro, será constituído o Tribunal Arbitral, sempre em número ímpar.
[4] Segundo Klabin (2004) o Código de Hamurabi se preocupou mais com a prática do direito do que com a administração, porém, alguns artigos tratavam dos poderes do rei. O rei, chefe da cidade, deveria fazer nela reinar a justiça e a paz. Os romanos acreditavam que o rei, interpreta a vontade divina que lhe é inspirada por meio de oráculos, presságios e sonho, e por meio do rei Deus declara a sua vontade. Os conflitos eram resolvidos com base na sentença do juiz, os únicos competentes para receber declarações sob julgamento eram os sacerdotes. Mas a justiça, era a vontade dos deuses cujas razões escapam ao entendimento dos homens, e este não devem julgá-la.
Por Gisele Leite, professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.
Fonte: Jornal Juri – 01 de Novembro de 2022.
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XIV Encontro CONIMA

O CONIMA – Conselho Nacional das Instituições de Arbitragem e Mediação, em comemoração aos seu Jubileu de Prata, realizará o seu XIV ENCONTRO CONIMA, nos dias 17 e 18 de novembro, no Hotel Atlante Plaza, em Recife/PE.
Após 2 anos de eventos totalmente virtuais, realizaremos o XIV ENCONTRO CONIMA na forma híbrida – presencial e virtual. Com isso poderemos oportunizar o contato pessoal, estabelecer novos Networking e resgatar aqueles que não pudemos encontrar nos últimos anos.
O tema do XIV ENCONTRO CONIMA será “Um sonho, muitos ideais e grandes conquistas” No dia 17 de novembro, das 14 às 17 hs, teremos o Workshop – “Constituição de Câmaras de Arbitragem e Mediação” , com abordagem de aspectos práticos. O Workshop será apenas para os participantes presenciais e haverá preço especial para inscrições do combo: Encontro + Workshop.
Informações e inscrições, clique aqui
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Arbitragem bate recorde na pandemia e Brasil ocupa segunda posição em ranking mundial

A crise sanitária suspendeu a prestação de serviços e a entrega de insumos, o que levou muitas empresas a terem dificuldades para cumprir suas obrigações contratuais. Este cenário levou ao aumento no número de disputas e fez subir a procura pela arbitragem para a solução dos conflitos no mundo inteiro. No Brasil, foi observada alta principalmente em demandas societárias e contratuais, mas também houve crescimento nas discussões trabalhistas e de esporte.
Dados da Pesquisa Arbitragem em Números, da professora e advogada Selma Lemes, mostram que o número de arbitragens em andamento atingiu a marca recorde de 1.047 casos no ano passado, alta de 5% na comparação com 2020, quando foram contabilizados 996 processos arbitrais. Em 2019, último ano antes da pandemia, foram 967 casos. Para se ter uma ideia, nos últimos dois anos entraram 655 novos processos arbitrais nas oito câmaras analisadas pelo estudo, que juntos totalizaram R$ 55,2 bilhões só no ano passado.
Essa expansão fez o Brasil passar de terceiro para segundo no ranking mundial do uso de arbitragem em 2020, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. O Brasil é o país mais representado na região (38%) com 150 casos (contra 133 em 2019). Na América Latina, ele foi seguido pelo México com 78 processos arbitrais (contra 51 em 2019), que ficou em 10º lugar no ranking mundial de classificação de nacionalidade. Os dados são da Corte Internacional de Arbitragem (ICC, na sigla em inglês).
“Apesar de pequenas oscilações sobre a quantidade de entradas de arbitragem nos últimos anos, os dados da última pesquisa ‘Arbitragem em Números’ refletem o aumento do número absoluto de procedimentos em andamento”, afirma o advogado Caio Lins Azuirson, do escritório Serur Advogados. “Esse cenário declara a consolidação da prática no Brasil, que tem se beneficiado de inovações jurídicas em áreas diversas, cada vez mais receptivas à sua realização, tais como a estipulação de arbitragem nos contratos com a Administração Pública Direta e Indireta (Parceria Público-Privada, Concessão em geral e de Parceria Pública de Investimento – PPI) ou do futuro aproveitamento pelas ‘Sociedades Anônimas do Futebol’ (Lei 14.193/2021).”
Principais áreas
Parte do incremento nos processos arbitrais durante a pandemia resulta das dificuldades das partes executarem os serviços ou fornecimento de produtos, conforme estipulado nos respectivos contratos. “A crise sanitária foi um evento disruptivo que desbalanceou as relações comerciais e gerou uma série de atritos no âmbito dos negócios”, avalia o advogado Pedro Batista Martins, sócio do escritório Batista Martins Advogados e um dos colaboradores da Lei de Arbitragem.
As matérias societárias lideraram o ranking em número de casos e valores, seguida de questões referentes a contratos de engenharia e energia, passando por matéria trabalhista e desportiva. Com o isolamento social determinado pelos governos na tentativa de reduzir o número de casos de Covid-19, muitas empresas foram afetadas. Trabalhadores em casa e falta de insumos criaram um círculo vicioso e as companhias não puderam prestar o seu serviço. Com isso, o cliente parou de pagar e foram necessárias revisões contratuais, um dos motivos do aumento no número de arbitragens.
“As arbitragens societárias podem ser divididas em arbitragens contratuais, em contratos de compra e venda de participação societária, e arbitragem societárias propriamente ditas (relação entre acionistas, cumprimento de acordos de acionistas, etc)”, destaca Mauricio Fabbri, sócio na área de Contencioso e Arbitragem, do escritório Cescon Barrieu.
IGP-M questionado
Um ponto que ganhou bastante destaque na pandemia foram as arbitragens questionando a aplicação do Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) durante o período do meio de 2020 até início de 2021, quando o indicador se descolou de outros índices de correção monetária. “Foram muitas questões relativas à aplicação ou não deste índice das obrigações contratadas e se devia aplicar na plenitude ou se deveria mitigar o impacto”, comenta Martins. As discussões foram desde aluguéis comerciais até a indústria, que tinha várias de suas obrigações contratadas com a aplicação deste índice de correção. “Havia prática disseminada de utilização do IGP-M, mas o problema do dólar e da valorização das commodities levaram ao aumento do indicador e este pulo assustou empresas. As que não conseguiram chegar a um acordo, recorreram à arbitragem”, complementa o advogado Martins.
É importante destacar que o aumento da arbitragem foi observado no mundo inteiro. “Aqui houve um fator de incremento que foi a questão do IGP-M, mas todos os países sentiram o aumento no número de casos devido às dificuldades comerciais criadas com a pandemia”, explica Martins.
O fenômeno mundial foi comprovado pela ICC, que bateu novos recordes em 2020. A Corte Internacional de Arbitragem registrou 929 procedimentos, levando ao mais alto número de casos administrados de acordo com as regras de arbitragem da CCI (1.833), número de partes envolvidas (2.507) e número de compromissos ou confirmações de árbitros (1.520). Outros registros incluem a diversidade geográfica de árbitros (92 nacionalidades) e locais de arbitragem (65 países).
Fonte: Jota – 17/10/2022 12:21.
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A Influência da LGPD na Arbitragem Internacional

Resumo
Em uma sociedade em constante busca de conhecimento e informação, onde os dados pessoais tornaram-se uma moeda de troca e um verdadeiro parâmetro de pesquisa e influência, a Lei Geral de Proteção de Dados surge como uma ferramenta que visa assegurar o direito à privacidade, à liberdade e ao livre desenvolvimento da pessoa natural. Em vista disso, propõe-se um estudo dos aspectos principais da LGPD, seus objetivos, fundamentos, conceitos relevantes e determinações, bem como, a verificação da influência dessa nova legislação nas Câmaras Arbitrais e procedimentos de Arbitragem Internacional. Será demonstrada a necessidade de proteção dos dados tratados pelas Câmaras Arbitrais e as principais legislações internacionais que influenciaram direta ou indiretamente na criação da Lei Geral de Proteção de Dados através de uma análise bibliográfica e comparativa. Por fim, serão verificadas ainda as principais medidas preventivas a serem adotadas para proteger os dados coletados no âmbito das arbitragens internacionais.
Palavras-chave: Lei Geral de Proteção de Dados. Tratamento de Dados. Arbitragem Internacional. Direito Internacional. Câmaras Arbitrais.
 
INTRODUÇÃO
Os procedimentos arbitrais são geralmente protegidos por sigilo, sendo resguardados os atos procedimentais e provas obtidas durante o procedimento, porém, é inegável que por trás de todo procedimento, seja entre pessoas físicas ou jurídicas, são coletados diversos dados pessoais. O crescimento das relações negociais internacionais alavancou também a utilização da Arbitragem Internacional como um mecanismo de resolução de eventuais conflitos decorrentes das relações contratuais. Essas relações muitas vezes englobam o cadastro de dados pessoais dos sujeitos envolvidos no procedimento arbitral: partes, advogados, árbitros, experts, testemunhas, dentre outros. Além disso, a própria dilação probatória poderá coletar dados referentes a terceiros por meio de depoimentos e provas documentais.
Todas essas informações coletadas são armazenadas em um banco de dados, normalmente no sistema interno de uma Câmara Arbitral. Diante desse cenário, é necessário resguardar os dados armazenados e fazer a devida adequação das Câmaras Arbitrais às exigências apontadas pela Lei Geral de Proteção de Dados que entrou em vigor em 18 de setembro de 2020.
Ao longo deste estudo serão abordados os aspectos gerais da LGPD, seus principais conceitos e princípios, bem como, será realizada uma análise comparativa entre a Lei Geral de Proteção de Dados e sua antecessora na Europa: a General Data Protection Regulation – GDPR. Serão elencadas também algumas das recomendações elaboradas pela do Protocolo de Cybersegurança na Arbitragem Internacional da International Council for Commercial Arbitration -ICCA, em parceria com a New York City Bar Association e o International Institute for Conflict Prevention & Resolution.
Outro aspecto abordado será a necessidade de adequação das Câmaras Arbitrais às disposições da LGPD, a observância aos critérios de transferência internacional de dados e as medidas que podem ser adotadas a fim de garantir a segurança dos dados coletados e assegurar o direito dos titulares.
 
ASPECTOS GERAIS DA LGPD
A troca de conhecimento e informações sempre foi uma atividade presente no comportamento humano, porém, atualmente, muito mais do que apenas dados, essas informações tornaram-se mercadorias valiosas. Os dados coletados em diversas plataformas têm transformado as informações pessoais em um verdadeiro produto, vendido com o intuito de identificar padrões, preferências e opiniões sob o pretexto de melhor adequar os serviços às necessidades de seus clientes.
Mas a partir do momento em que essa coleta de informações é tratada como mercadoria, o titular se torna o produto e não mais o cliente. Apesar de o tratamento de dados ser uma prática recorrente e necessária para o bom funcionamento de diversos setores da sociedade, é preciso estabelecer limites para o tratamento desses dados a fim de assegurar a privacidade do titular dessas informações.
Além disso, a tecnologia e a inovação tem sido aspectos essenciais para o desenvolvimento da sociedade contemporânea, de modo que, a globalização proporcionada pelo acesso à internet e o crescimento da troca de informações online, bem como, das redes sociais e aplicativos, intensificou a necessidade de proteção dos dados que são compartilhados pelos usuários.
De acordo com FRAZÃO, TEPEDINO e OLIVA:
Com o acelerado desenvolvimento tecnológico e a consolidação de espaços públicos virtuais, a gestão da informação sobre si próprio tornou-se expressão fundamental do indivíduo. Por conseguinte, revela-se impossível cogitar a proteção integral à liberdade, à privacidade e ao desenvolvimento da pessoa natural sem que se lhe garanta eficaz defesa e controle de seus próprios dados – o que se traduz na expressão autodeterminação informativa. (FRAZÃO; TEPEDINO; OLIVA, 2019, p. 677/678)
A Lei Geral de Proteção de Dados surge com o intuito de atender aos aspectos jurídicos dessas novas demandas que são apresentadas pela Pós-Modernidade.
O Art. 1° da referida lei apresenta em termos gerais o objeto a ser regulado por ela e o objetivo da criação da LGPD:
Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. (BRASIL, 2018, Art.1º)
O objetivo da Lei Geral de Proteção de Dados é, portanto, assegurar o direito de privacidade e liberdade dos usuários, assim como, garantir o livre desenvolvimento da pessoa natural, resguardando seus dados pessoais.
Vale ressaltar que a lei abrange tanto os dados tratados por meio digital quanto por meios não- digitais, tratados por pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, devendo ser observada em todo o território nacional.
Segundo COSTA:
Em uma Era na qual reputação e credibilidade são julgadas tão rapidamente quanto o dedilhar dos limitados caracteres dos aplicativos de smartphones, e diante da flagrante fragilidade dos usuários da internet perante o tratamento e a manipulação dos seus dados, a preservação da privacidade, ancorada pela então frágil autodeterminação informativa, esta entendida como a faculdade de que toda e qualquer pessoa possa determinar os limites do uso de seus dados pessoais ganha aos poucos a proteção estatal. Ainda que a preocupação pela privacidade remonte à Antiguidade, é na sociedade moderna que o embate entre o avanço tecnológico e a invasão da vida privada carece cada vez mais de proteção, fazendo com que as legislações nacionais primem por legislar quanto à coleta, ao armazenamento, ao uso e à transmissão dos dados pessoais. (COSTA, 2019, p. 4)
No que diz respeito à abrangência da lei, o Art.3° da LGPD elenca também a possibilidade de aplicação da lei a dados em tratamento em outros países, desde que, a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços, o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; ou ainda de dados que tenham sido coletados no território nacional, sendo assim considerado se a pessoa titular dos dados estiver no Brasil no momento da coleta.
O Art.5° da LGPD apresenta alguns conceitos extremamente relevantes para a abordagem da matéria, sendo essencial ressaltar alguns deles: o conceito de dado pessoal, tratamento, banco de dados, titular, controlador, operador, encarregado e agentes de tratamento.
O dado pessoal é toda informação relativa a uma pessoa identificada ou identificável, há ainda o dado pessoal sensível que diz respeito à aspectos raciais e étnicos, sexuais, dados referentes à saúde, genéticos ou biométricos, ou dados referentes a filiação a organizações religiosas, políticas, filosóficas ou sindicatos. Existe também o dado anonimizado que se refere ao caso em que não é possível identificar, através dos meios disponíveis no momento do tratamento, a pessoa natural titular da informação.
O tratamento consiste em toda operação realizada com dados pessoais, desde a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação, controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração.
Outros conceitos importantes são os sujeitos envolvidos na operação de tratamento de dados. O titular é a pessoa a quem os dados tratados se referem, o controlador é o sujeito a quem compete as decisões acerca do tratamento desses dados, podendo ser tanto pessoa natural quanto jurídica, de direito público ou privado.
Há ainda o operador, aquele que de fato realiza o tratamento dos dados em nome do controlador, havendo também, o encarregado, a pessoa indicada para ser um canal de comunicação entre o controlador, os titulares e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Já a atuação conjunta do controlador e operador forma o conjunto de sujeitos denominados como agentes de tratamento.
A LGPD tem como princípios: a finalidade que determina que os dados coletados deverão ser usados apenas para o fim específico informado ao titular; a adequação da forma de tratamento utilizada à sua finalidade; a necessidade, devendo o tratamento restringir-se ao mínimo de informações necessárias para cumprir a finalidade; o livre acesso do titular às suas informações; a  qualidade dos dados coletados; a segurança; transparência; a prevenção; a não-discriminação; responsabilização e a prestação de contas.
O Art. 18 da LGPD lista ainda alguns dos direitos do titular, sendo estes o direito de obter do controlador dos dados a confirmação da existência de tratamento, o acesso aos dados tratados, a correção de dados que eventualmente estejam incompletos ou desatualizados, a anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, a portabilidade desses dados para outro fornecedor de produto ou serviço, informação sobre as entidades com as quais o controlador compartilhou esses dados, a revogação do consentimento e informações sobre a possibilidade de não dar o consentimento e as consequências de uma eventual negativa.
Em face do exposto, é possível verificar que o principal intuito desta legislação é proteger os dados pessoais dos titulares a fim de assegurar o direito à privacidade constitucionalmente estabelecido no Art. 5, X da Constituição Federal. A LGPD surge com o intuito de impedir a comercialização desenfreada de dados pessoais, visando preservar o direito ao livre desenvolvimento do indivíduo a fim de que este não seja transformado em um mero produto em meio à sociedade da informação.
 
LEGISLAÇÕES INTERNACIONAIS E ESTRANGEIRAS SOBRE PROTEÇÃO DE DADOS
A necessidade de proteção dos dados pessoais é um fator que não se limita ao território nacional, mas que tem se evidenciado mundialmente, gerando então o surgimento de diversas legislações e protocolos internacionais que buscam regular a matéria.
Com a expansão das relações pessoais, comerciais, negociais e jurídicas para além das fronteiras nacionais, surgiu a necessidade de observar, nas transações internacionais, as leis acerca do tratamento de dados.
Em decorrência disto, a criação da LGPD foi fortemente influenciada por outros dispositivos internacionais e estrangeiros que já vinham sendo implementado em outros países, uma dessas legislações foi a General Data Protection Regulation – GDPR, adotada pela União Europeia para proteger os dados pessoais referentes a seus cidadãos.
A criação da GDPR uniformizou os critérios para tratamento de dados em toda a União Européia, gerando uma forte pressão internacional a fim de que os demais países, inclusive o Brasil, se adequassem e implementarem normas mais rígidas de tratamento de dados para dar continuidade a suas relações comerciais com a Europa:
Além das questões éticas, a pressão internacional exercida pela General Data Protection Regulation (GDPR) da União Europeia (UE) foi uma motivação, definindo que apenas organizações de países com um nível maior ou igual de rigor para proteção de dados em legislação podem armazenar dados pessoais dos cidadãos da União Européia, impactando, por exemplo, diretamente os negócios brasileiros. (CARVALHO; OLIVEIRA; CAPPELI; MAJER, 2019, p.1)
A GDPR entrou em vigor em 25 de maio de 2018 sendo aplicável a todos os países membros da União Europeia e surgiu como uma verdadeira revolução acerca do conceito de privacidade ao regular o tratamento de dados pessoais de todos os cidadãos da União Europeia independentemente de onde esses dados serão tratados (GODDARD, Michel, 2017, p.703, tradução nossa).3
Existem claras semelhanças entre a GDPR e a LGPD que evidenciam o uso da legislação europeia como uma fonte de inspiração na elaboração da Lei Geral de Proteção de Dados, tal fato é constatado, por exemplo, na conceituação legal de alguns termos.
Tanto a LGPD em seu Art.5, inciso I quanto à GDPR em seu Art. 4 (1) definem dados pessoais como qualquer informação relativa a uma pessoa natural identificada ou identificável. Já o termo tratamento, conceituado no Art.5, X da LGPD e no Art.4°(2) da GDPR, apresenta algumas divergências entre as duas leis, sendo importante ressaltar que ambas apresentam um rol de operações realizadas com dados pessoais que se enquadram no conceito, levantando divergências acerca da taxatividade ou não desse dispositivo.
Ambas as legislações, na redação do conceito de tratamento de dados passam a ideia de um rol meramente exemplificativo:
Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:
X – tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração;” (BRASIL, LGPD, 2018, Art. 5º)
Art. 4º Para fins desta lei, considera-se:
(2) processamento’ significa qualquer operação ou conjunto de operações realizado em dados pessoais ou em conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não, como coleta, registro, organização, estruturação, armazenamento, adaptação ou alteração, recuperação, consulta, uso, divulgação por transmissão, disseminação ou de outra forma disponibilizando, alinhamento ou combinação, restrição, apagamento ou destruição; (UNIÃO EUROPÉIA, GDPR, 2018, Art. 4º-2, tradução nossa).4
Essa inexatidão no conceito de tratamento de dados pode criar um cenário de enorme insegurança para os agentes de tratamento que precisam enquadrar-se nos parâmetros legais. Com um rol tão extenso e ampliável é preciso haver uma cuidadosa observância das medidas necessárias para proteção de dados pessoais.
Outra comparação necessária diz respeito aos princípios norteadores de ambas as legislações em análise. A LGPD em seu Art. 6 elenca 10 princípios que devem ser observados, já a GDPR em seu Art. 5 enumera 8 princípios, apesar de haver algumas divergências entre uma lei e outra, muitos desses institutos se correspondem em ambas as legislações.
O princípio da finalidade apresenta-se em ambas as leis com a mesma nomenclatura, já a adequação, prevenção e necessidade presentes na LGPD apresentam-se reunidos na GDPR como um mesmo princípio: a minimização de danos. O princípio do livre acesso, previsto na legislação brasileira não encontra um correspondente na lei adotada pela União Europeia.
A qualidade dos dados é nomeada na GDPR como o instituto da exatidão dos dados tratados, já os conceitos de não-discriminação e transparência foram reunidos em um único princípio: o da justiça e transparência. O conceito de segurança do tratamento de dados é nomeado na legislação Europeia como integridade e confidencialidade. No que concerne à responsabilidade e prestação de contas previsto pela LGPD, na GDPR consta apenas o princípio da prestação de contas.
Vale ressaltar que a GDPR adota um princípio que não foi incorporado à legislação brasileira: o instituto da limitação de armazenamento, que consiste na limitação do armazenamento dos dados por tempo não superior ao necessário para os fins os quais os dados são processados. Abre-se a exceção por períodos mais longos desde que os dados sejam processados para fins exclusivamente de interesse público, pesquisa científica, histórica ou fins estatísticos, devendo ser adotadas as medidas preventivas previstas pela GDPR.
Além da influência direta da GDPR, especificamente no que concerne à proteção de dados no âmbito da Arbitragem Internacional, a Lei Geral de Proteção de Dados foi precedida também por um protocolo elaborado pelo International Council for Commercial Arbitration -ICCA, em parceria com a New York City Bar Association e o International Institute for Conflict Prevention & Resolution por meio do Working Group on Cybersecurity in International Arbitration que traçou diretrizes gerais para melhorar a cibersegurança nos procedimentos arbitrais.
Esse protocolo tem o status de soft law, uma vez que, foi elaborado por organismos não- estatais visando traçar parâmetros gerais e orientações sobre proteção de dados:
Em síntese, normas não-estatais devem ser compreendidas como normas emanadas por entes não estatais e que não são consideradas vinculantes. Para fim do estudo sobre processo arbitral, são normas não estatais os instrumentos elaborados por organizações
internacionais, instituições arbitrais e entidades destinadas ao estudo e ao desenvolvimento da arbitragem. Podem ter a forma de leis-modelo, diretrizes, regulamentos, resoluções, regras, checklists, notas, códigos de conduta, entre outros, com a finalidade de organizar o procedimento arbitral, ou certos aspectos desse procedimento, e não possuem caráter mandatório ou vinculante. (MANGE; 2014, p. 194)
O Protocolo da ICCA de Cibersegurança na Arbitragem Internacional não tem como intuito estabelecer uma forma específica de proteção de dados no procedimento arbitral, mas oferece diretrizes, princípios gerais que podem ser considerados pelas partes e pelo Tribunal Arbitral, resguardada a autonomia da vontade das partes e a independência dos árbitros para julgar quais medidas seriam necessárias frente às circunstâncias de cada caso.
O Protocolo da ICCA ressalta a importância de que, uma vez estipuladas as medidas para proteção de dados, estas devem ser devidamente observadas por todos os envolvidos no procedimento arbitral, como dispõe o Princípio 3:
As partes, árbitros e instituições administradoras devem garantir que todas as pessoas direta ou indiretamente envolvidas em uma arbitragem em seu nome estejam cientes e sigam quaisquer medidas de segurança da informação adotadas em um processo, bem como o impacto potencial de quaisquer incidentes de segurança (ICCA, 2020, p. 1, tradução nossa)5
A não observância das medidas de segurança adotadas pode gerar punições para aquele que eventualmente dê causa a um vazamento de informações e incidentes de segurança da informação podem gerar uma alocação dos custos entre as partes, conforme prevê o Princípio 13 do Protocolo da ICCA:
Em caso de violação das medidas de segurança da informação adotadas em procedimento arbitral ou na ocorrência de incidente de segurança da informação, o tribunal arbitral poderá, a seu critério: (a) alocar os custos relacionados entre as partes; e / ou (b) impor sanções às partes (ICCA, 2020, p. 3, tradução nossa).6
Para que sejam determinadas as medidas de proteção de dados adequadas a cada caso, o Protocolo sugere no Princípio nº 6 alguns fatores a serem considerados pelas partes, pela Câmara Arbitral e pelo Tribunal Arbitral: o perfil de risco da arbitragem; as práticas existentes de segurança da informação, infraestrutura e capacidade das partes; os encargos, custos e recursos; a proporcionalidade em relação ao tamanho, valor e perfil de risco da controvérsia e a eficiência do procedimento arbitral.
O instituto traz ainda uma lista das principais áreas de vulnerabilidade que precisam ser observadas e fortalecidas para garantir a maior proteção dos dados pessoais coletados durante um procedimento arbitral, como dispõe o Princípio nº 7 do Protocolo da ICCA:
Princípio 7 Ao considerar as medidas específicas de segurança da informação a serem aplicadas em uma arbitragem, devem ser consideradas as seguintes categorias:
  • gestão de ativos;
  • controles de acesso;
  • criptografia;
  • segurança das comunicações;
  • segurança física e ambiental;
  • segurança das operações; e
  • gestão de incidentes de segurança da informação. (ICCA, 2020, 2, tradução nossa)7
Diante disto, é possível verificar que, em todo o mundo, a proteção de dados, sejam eles armazenados em meio físico ou virtual, tem sido alvo de muitos questionamentos e estudos, havendo ainda um cenário de incerteza mesmo nos países que já regulamentaram a matéria. Assim como o modo de compartilhar informações está em constante mudança, a proteção dessas informações é uma atividade dinâmica e extremamente necessária. Nenhuma legislação foi capaz de trazer uma resposta definitiva acerca da segurança de dados, mas é evidente o crescimento desse setor no estudo do Direito.
 
A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DE DADOS NAS CÂMARAS DE ARBITRAGEM
A Lei de Arbitragem em seu Art. 10 estabelece a necessidade de qualificação das partes compromitentes, a fim de que haja identificação dos contratantes. A esse respeito o douto professor Carlos Alberto Carmona delineia:
O primeiro inciso do Art.10 preocupou-se com a qualificação, tão completa quanto possível, das partes compromitentes. O objetivo da regra sob análise é apenas o de deixar fora de qualquer dúvida a identificação dos contratantes. (CARMONA, 2009, p.198)
Essa qualificação dos sujeitos envolvidos no procedimento arbitral enquadra-se exatamente no conceito de dado pessoal apresentado pela LGPD, uma vez que, ao longo do procedimento arbitral serão coletadas diversas informações relativas às partes devidamente identificadas.
Vale salientar que, ainda que o procedimento envolva pessoas jurídicas, algumas das informações coletadas podem referir-se especificamente a pessoas naturais ocupantes de cargos
diretivos das empresas envolvidas, enquadrando-se, nesses casos, no conceito de dado pessoal protegido pela LGDP.
Como resultado dessa necessidade de qualificação e coleta de informações, as Câmaras Arbitrais possuem um enorme banco de dados acerca de seus clientes, árbitros, experts e testemunhas, seja por meio de um cadastro desses dados em seu sistema interno, seja através das provas coletadas no curso do procedimento arbitral, em decorrência disto, há a necessidade de regular o tratamento desses dados.
Em uma sociedade em que a reputação e a opinião pública são fatores tão relevantes para uma empresa quanto os seus próprios rendimentos, é preciso atentar para a adoção de ações preventivas para proteção de dados pessoais. As medidas de proteção de dados são tão necessárias quanto as ferramentas de compliance para afastar o envolvimento em atos anticoncorrenciais, as medidas para maior diversidade e inclusão, bem como, a preocupação com a consciência ambiental que atualmente são fatores extremamente relevantes para a imagem de uma empresa. A adoção dessas medidas já se tornou um fator diferencial na competitividade do mercado.
As Câmaras Arbitrais, tais quais as empresas privadas, devem grande parte de sua atuação ao prestígio a elas associado, de modo que, qualquer matéria capaz de interferir na credibilidade dessas instituições, precisa ser devidamente analisada.
Atualmente já existem casos de ataques cibernéticos a Câmaras Arbitrais, cabendo destacar o caso ocorrido em 2015 na Permanent Court of Arbitration em Haia, na Holanda, na qual ocorreu um ataque cibernético ao site da Câmara Arbitral no curso de um procedimento entre a China e as Filipinas acerca do controle do Mar do Sul da China. Ocorre que a invasão do site possibilitou o acesso aos computadores dos diplomatas e advogados envolvidos no caso, de modo que a China contou com uma vantagem indevida.
O próprio Judiciário brasileiro vem sendo alvo de ataques cibernéticos que já invadiram o sistema do Superior Tribunal de Justiça em 03 de novembro de 2020, o que gerou a suspensão dos prazos processuais e sessões de julgamento (VALENTE; VITAL; 2020, p.1). De igual modo, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região sofreu um ataque cibernético pelo qual um perfil anônimo na rede social Twitter assumiu a autoria no dia 27 de novembro de 2020 (JURINEWS; 2020, p.1)
Os ataques cibernéticos são uma realidade assustadora tanto no setor público quanto no privado e causam danos irreparáveis às organizações atacadas. No âmbito das Câmaras Arbitrais esse prejuízo pode ser ainda maior, compreendendo não apenas danos econômicos, como também, possibilitando a realização de quebras de confiança que comprometeriam a credibilidade da instituição e colocariam em dúvida a independência e a imparcialidade dos árbitros.
A necessidade de proteção dos dados nas Câmaras Arbitrais não se restringe ao âmbito do procedimento arbitral, abrangendo também as informações armazenadas para além do procedimento a fim de que essas não venham a ser acessadas ilegalmente e utilizadas para outras finalidades.
No ano de 2015, a Cambridge Analytica, uma firma britânica, acessou dados pessoais de 87 (oitenta e sete) milhões de usuários do Facebook para fazer a análise dessas informações e através delas e influenciar os eleitores nos Estados Unidos da América (ISAAK E HANNA, 2018, p.56/59). Outro caso importante ocorreu em 2014, no Brasil, no qual a empresa de telecomunicação Velox foi acusada de vender dados pessoais de seus clientes a terceiros, ilegalmente, sendo condenada a pagar multa de R$3,5 milhões (ZANATTA, 2015, p.447/470). Ambos os casos, demonstram que, por mais irrelevante que a informação aparente ser, esta precisa ser resguardada e deve atender aos limites da finalidade para a qual foi coletada, sendo sempre observado o consentimento do titular.
Outro fator indispensável à adequação das Câmaras Arbitrais à LGPD é o da transferência internacional de dados, entendida com a transferência de dados pessoais para país estrangeiro ou organismo internacional do qual o país seja membro.
A LGPD regula o tema nos seus Artigos 33 a 36 e apresenta as hipóteses em que é autorizada a transferência internacional de dados:
Art. 33. A transferência internacional de dados pessoais somente é permitida nos seguintes casos:
  • – para países ou organismos internacionais que proporcionem grau de proteção de dados pessoais adequado ao previsto nesta Lei;
  • – quando o controlador oferecer e comprovar garantias de cumprimento dos princípios, dos direitos do titular e do regime de proteção de dados previstos nesta Lei, na forma de:
  1. cláusulas contratuais específicas para determinada transferência;
  2. cláusulas-padrão contratuais;
  3. normas corporativas globais;
  4. selos, certificados e códigos de conduta regularmente emitidos;[…](BRASIL, LGPD, 2018, 33)
Nota-se que um dos requisitos de autorização da transferência internacional de dados é através da comprovação do cumprimento dos direitos do titular por meio de cláusulas contratuais específicas que autorizam a transferência. Essa hipótese abre a possibilidade de inclusão de cláusulas contratuais acerca da transferência de dados juntamente com o compromisso arbitral ou cláusula compromissória, a fim de legitimar a transferência desses dados em arbitragens internacionais.
Outro requisito observado é de que o país ou organismo internacional para quem esses dados serão transferidos deve proporcionar o mesmo grau de proteção dos dados previstos pela LGPD, ressalta-se que a GDPR, em seu Artigo 46, também apresenta esse requisito para
transferência de dados entre países da União Europeia e os demais países. Isso demonstra a tendência mundial e crescente de buscar relações comerciais, contratuais e jurídicas apenas entre instituições que possuam medidas adequadas para proteção de dados.
Tanto a GDPR em seu Artigo 46.2 quanto a LGPD no Artigo 34 estabelecem a necessidade de que o país ou organização de destino tenha uma regulamentação que atenda aos princípios gerais da proteção de dados pessoais e que adote medidas de segurança para resguardar os direitos dos titulares das informações.
Desse modo, a criação da Lei Geral de Proteção de Dados apresenta-se como uma verdadeira revolução não apenas no funcionamento de empresas, como também nos procedimentos de arbitragem internacional que, além de coletar informações, frequentemente transferem os dados coletados para outras instituições internacionais e estrangeiras.
 
1.   ADEQUAÇÕES NECESSÁRIAS PARA AS CÂMARAS ARBITRAIS
Um dos princípios norteadores da Lei Geral de Proteção de Dados é o princípio da prevenção que determina o dever dos agentes de tratamento de adotarem medidas para prevenir possíveis danos decorrentes do tratamento de dados pessoais, nos termos do Art. 6 da referida lei. Esse princípio, aliado ao princípio da segurança, da responsabilização e da prestação de contas gera a necessidade de adequação dos diversos agentes de tratamento aos termos da LGPD, bem como, a adoção de medidas preventivas que resguardem o direito dos titulares:
Outra fundamental característica da nova legislação consiste no significativo fomento ao aspecto preventivo, estabelecendo procedimentos mandatórios para os controladores e operadores de dados pessoais, tais como os deveres atinentes à implementação de severas políticas de segurança para proteção dos dados de acessos não autorizados. (FRAZÃO; TEPEDINO; OLIVA; 2019, p.681)
Diversas são as possibilidades de medidas a serem adotadas para proteger dados pessoais tanto por meio da criação de protocolos, imposição de limites de acesso e divulgação de informações, quanto por meio do estabelecimento de diretrizes em casos de ciberataques.
Uma vez que as partes e o tribunal tenham avaliado as custas e o procedimento, as partes e o tribunal podem então considerar os três princípios temáticos a seguir com relação à ameaça de ciberataques no contexto da arbitragem: (i) o estabelecimento de protocolos de segurança para o armazenamento e transferência de informações confidenciais, (ii) limitação da divulgação de informações confidenciais, e (iii) em caso de qualquer violação / ataque, o processo para notificar a pessoa afetada e para corrigir / mitigar a violação / ataque.(PASTORE; 2017, p. 1028)
No Brasil, não há uma regulamentação específica acerca da cibersegurança na arbitragem, deixando a critério de cada Câmara Arbitral o desenvolvimento de seus próprios meios de segurança. Faz-se necessário, portanto, que sejam estabelecidos protocolos internos nas instituições, contando com a expertise tanto de profissionais do direito quanto de profissionais da tecnologia especializados na área.
Além disso, é essencial a promoção de parâmetros gerais, diretrizes mínimas a serem seguidas pelos Tribunais Arbitrais do país todo, resguardada a autonomia dos árbitros para decisão das medidas de segurança mais adequadas para cada caso.
A criação de equipes multidisciplinares fixas dentro das Câmaras Arbitrais também se tornou um requisito inafastável, visto que, é necessário profissionais do direito para a compreensão dos aspectos jurídicos da LGPD e profissionais da tecnologia para colocar em prática as medidas de segurança.
O Protocolo da ICCA elenca diversas medidas de proteção de dados que podem ser adotadas pelos Tribunais Arbitrais que merecem ser destacadas para serem aplicadas também no Brasil. A primeira diretriz apresentada é a do Conhecimento e Educação, é essencial manter-se informado sobre as ameaças e soluções de segurança, a segurança de dados requer atenção contínua e constante atualização, sendo necessário que as instituições procurem estar sempre a par das medidas de proteção de dados mais atuais e repassem esse conhecimento para aqueles que possuem acesso às informações tratadas.
Outro aspecto importante é a gestão de ativos, a consciência de onde esses dados estão circulando e o investimento na qualidade da infraestrutura digital utilizada, bem como, a necessidade de estabelecer práticas e políticas organizacionais e dar ciência delas aos profissionais e partes que de alguma forma possuem acesso à informação, para que estas adotem as diretrizes necessárias, por exemplo, para proteger os dados acessados por meio de um dispositivo pessoal.
A própria minimização dos dados coletados também deve ser uma medida recorrente, que encontra previsão na LGPD e também foi adotada pela GDPR. Além disso, há a necessidade de evitar cópias desnecessárias de documentos e estabelecer práticas de retenção e destruição dessas informações desnecessárias, tanto no meio digital, quanto nas cópias físicas.
Outra medida que deve ser observada, principalmente no curso de arbitragens internacionais, é a limitação do acesso a dados confidenciais durante viagens. As arbitragens internacionais muitas vezes requerem um deslocamento entre um país e outro, de modo que, ao transitar entre diversas redes não seguras e acessar dados referentes ao procedimento arbitral, o árbitro, expert ou parte envolvida pode acabar facilitando o vazamento dessas informações.
Ademais, existe a necessidade de estabelecer um sistema de backups periódicos, tanto por meio da nuvem quanto através de dispositivos externos. Outra medida que pode ser implementada é a limitação do acesso a esses dados, estabelecendo quais indivíduos poderão ter acesso, implementando senhas fortes com alterações periódicas e até mesmo requerendo identificação biométrica ou identificação multifatorial.
A criptografia para a transmissão de dados também é uma medida indispensável na Arbitragem Internacional, uma vez que grande parte das comunicações oficiais do procedimento ocorrem por e-mail e frequentemente contêm informações sigilosas. Além da criptografia é possível recorrer a serviços especializados de compartilhamento de dados, sendo essencial orientar os usuários de como proceder para resguardar as informações e evitar vazamento de dados por falha humana.
Tanto a LGPD, quanto a GDPR e o Protocolo da ICCA ressaltam que a proteção de dados não se refere apenas às informações armazenadas em meio digital, como também, documentos salvos em meio físico. Em vista disso, há a necessidade ainda de resguardar o próprio espaço físico de armazenamento de documentos das Câmaras Arbitrais a fim de que não haja extravio de documentação armazenada fisicamente.
Para proteger adequadamente as informações é necessário investimento nas ferramentas eficientes, pois, apesar dos inúmeros recursos disponíveis gratuitamente e tendo em vista a natureza das informações compartilhadas nos procedimentos arbitrais, é necessário que as Câmaras Arbitrais se adaptem a essa nova legislação investindo amplamente na segurança dos dados tratados, a fim de garantir a privacidade dos titulares e resguardar a credibilidade da instituição.
 
2.   CONCLUSÃO
A proteção de dados pessoais é uma temática ainda pouco explorada e recentemente regulamentada pelo direito brasileiro, o tratamento de dados apesar de ser uma prática extremamente recorrente, somente ganhou um enfoque maior a partir das novas necessidades trazidas pelo desenvolvimento da tecnologia e das inovações relativas à coleta de informações.
A Lei Geral de Proteção de Dados foi elaborada objetivando assegurar o livre desenvolvimento da pessoa natural e garantir a liberdade e a privacidade dos titulares desses dados. Em vista disso, surge a necessidade de adequação dos agentes de tratamento às novas diretrizes traçadas pela LGPD a fim de prevenir o vazamento e mal uso de informações pessoais.
No contexto dos procedimentos arbitrais há uma necessidade ainda maior de proteção dessas informações, de modo que, as Câmaras Arbitrais, em observância ao princípio da prevenção, responsabilidade e prestação de contas, deverão adotar medidas minuciosas para resguardar esses dados.
Essas adequações são essenciais não apenas para assegurar o direito dos titulares, como também, proteger a credibilidade e reputação das Câmaras Arbitrais, uma vez que, as medidas preventivas tornaram-se parâmetros para avaliar a credibilidade dessas instituições. A elaboração de protocolos, a criação de setores especializados em cibersegurança e a exclusão periódica de dados desnecessários são apenas algumas das mudanças essenciais para proteger os procedimentos arbitrais domésticos e internacionais dos riscos trazidos pelo vazamento de dados pessoais.
Portanto, vislumbra-se claramente que a criação da Lei Geral de Proteção de Dados trouxe um avanço considerável nas discussões sobre segurança de informações, entretanto, no âmbito da arbitragem internacional ainda há muito a ser regulamentado e adequado para garantir a proteção dos dados pessoais e o direito constitucional à privacidade.
 
3.   REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).Brasília, DF: Presidência da República [2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 24 nov 2020.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 3ª Edição, São Paulo,Editora Atlas, 2009, p.198.
CARVALHO, Luís Paulo; OLIVEIRA, Jonice; CAPPELI, Claudia; MAJER, Violeta. Desafios de Transparência pela Lei Geral de Proteção de Dados. 2019. Programa de Pós-graduação em Informática, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ , p.1.
COSTA, Tiago R. Veloso. Proteção de Dados e Arbitragem: para além de uma questão legal. JOTA, 2019.Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/protecao-de-dados-e-arbitragem- para-alem-de-uma-questao-legal-29062019 Acesso em: 24 nov 2020.
FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato, A Lei Geral de Proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro, Revista dos Tribunais, 2ª Edição, São Paulo, 2019,p. 677/678.
GODDARD, Michele. The EU General Data Protection Regulation (GDPR): European Regulation that has a Global Impact International Journal of Marketing Research. 2017. International Joural of Market Research, vol. 59, P. 703/705. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.2501/IJMR-2017-050?journalCode=mrea. Acesso em: 24 nov 2020.
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ISAAK, J., HANNA, M. J.User Data Privacy: Facebook, Cambridge Analytica, and Privacy Protection, 2018, IEEE, Computer 51 (8), p. 56/59.
VIROU moda: TRF1 sofre ataque hacker e site está fora do ar. Jurinews: notícias jurídicas. Publicado em 27 nov 2020. Disponível em: https://jurinews.com.br/tecnologia/virou-moda-site-do-trf1-sofre- ataque-hacker/. Acesso em: 29 nov 2020.
MANGE,Flavia Foz. Processo Arbitral: aspectos transnacionais. Editora Quartier Latin do Brasil, São Paulo, 2014.
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UNIÃO EUROPEIA. EU General Data Protection Regulation (GDPR). Disponível em: https://gdpr- info.eu. [S.I.]. Acesso em: 24 nov 2020.
VALENTE, Fernanda; VITAL, Danilo. STJ sofre ataque hacker e suspende prazos processuais até segunda-feira.CONJUR.Publicado em 04 nov 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020- nov-04/stj-sofre-ataque-hacker-suspende-prazos-segunda-911 Acesso em: 29 nov 2020.
ZANATTA, R. A Proteção de Dados entre Leis, Códigos e Programação: os limites do Marco Civil da Internet, 2015, São Paulo: Quartier Latin, p. 447/470.
Por Adriano Fernandes Ferreira, Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (2001), Mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2005), Doutorado em Ciências Jurídicas pela Universidad Castilha la Mancha, na Espanha (2014) e Pós-Doutor em Direito Pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha (2019). Atualmente é professor Adjunto IV, da Universidade Federal do Amazonas- UFAM – das disciplinas de Direito Internacional Público e Direito Internacional Privado e Vice-Diretor da Faculdade de Direito da UFAM. E Eloah Scantelbury de Almeida, Membro do Grupo de Estudos em Arbitragem e Direito Empresarial- UFAM, do Núcleo de Estudos em Arbitragem do Norte, do Young International Council for Commercial Arbitration e do Comitê de Jovens Arbitralistas. Competidora do 27 Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot (2019) e da XI Competição Brasileira de Arbitragem da CAMARB (2020). Menção Honrosa na Competição Regional Norte de Arbitragem, 2020. Graduanda em direito na Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas.
Fonte: OAB/RJ – 11/10/2022.
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PLP 124/2022: propostas de alteração do Código Tributário Nacional

Como resultado dos trabalhos da Comissão de Juristas instaurada pelo Senado com vistas a promover alterações no processo administrativo e tributário nacional, foram apresentados anteprojetos de lei que resultaram no Projetos de Lei Complementar nº 124 e 125/2022 (PLP 124 e 125/2022), além dos Projetos de Lei nº 2.481, 2.483, 2.484, 2.485, 2.486, 2.488 e 2.490, todos de autoria do senador Rodrigo Pacheco, presidente da Casa.
Do rol dessas inovações legislativas, merece destaque o PLP 124/2022, que “Dispõe sobre normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo em matéria tributária”, promovendo alterações no Código Tributário Nacional (CTN).
O PLP 124/2022 introduz novos dispositivos ao CTN, altera a redação de outros e, curiosamente, não revoga nenhum dispositivo do Código.
Lamentavelmente, o PLP 124/2022 passou ao largo dos Capítulos IV e V, do Livro Segundo do CTN, salvo alteração pouco ousada introduzida ao artigo 138. Enfim, perdeu-se uma oportunidade de dar um melhor tratamento à parte do Código dedicada à sujeição passiva, reconhecida pela quase unanimidade da doutrina como o trecho de pior redação da Lei Complementar Tributária.
O PLP 124/2022 introduz ao CTN um artigo 113-A, com dois parágrafos, para tratar das penalidades pecuniárias.
De acordo com o caput do artigo 113-A, as multas por descumprimento de obrigações principais e acessórias deverão observar o princípio da razoabilidade e guardar relação de proporcionalidade com a infração praticada pelo sujeito passivo.
Os §§1º e 2º do artigo 113-A estipulam um valor máximo a ser observado na fixação de penalidades pecuniárias, de modo que as multas decorrentes de procedimentos de ofício não poderão ser superiores ao valor do tributo exigido “ou do crédito cuja fiscalização tiver sido afetada pela desconformidade ou pelo atraso na prestação das informações pelo sujeito passivo”. Também fica estabelecido que a multas por dolo, fraude, simulação, sonegação ou conluio — também chamadas de multas qualificadas — não poderão ser superiores ao dobro da multa originalmente aplicada.
Até aí o PLP 124/2022 traz louvável modificação ao Direito Positivo, incorporando ao Código aquilo que já é uma tendência nos Tribunais, valendo a pena destacar os julgamentos, pelo STF, da ADI 551 (Ilmar Galvão, DJ de 14/02/2003), do RE 657.372 (Ricardo Lewandowski, DJ de 10/06/2013) e da ADI-MC 1.075 (Celso de Mello, DJ de 24/11/2006).
A questão do teto da fixação das multas, a propósito, será analisado pelo STF no julgamento de mérito do Tema 1.195, cujo RE 1.335.293, relatado pelo ministro Nunes Marques, ainda não tem previsão de pauta.
Neste ponto, todavia, o PLP 124/2022 poderia ter sido mais ousado, determinando o fim da imposição das multas por informações incorretas em  declarações, arquivos magnéticos e/ou escrituração nos casos em que for possível a retificação, mesmo após intimação dirigida pela fiscalização. Ora, se o contribuinte é intimado para retificar o erro e corrige o equívoco no prazo fixado pela autoridade lançadora, exigir penalidade mesmo após a retificação, tal como ocorre no artigo 62-B, II, “b”, da Lei nº 2.657/96-RJ, não estimula a conformidade à legislação tributária.
Na sequência, o PLP 124/2022 altera a redação do caput do artigo 138, do CTN, para deixar claro que a denúncia espontânea também afasta a imposição da multa de mora, rechaçando qualquer interpretação de que a multa pelo atraso não tem natureza punitiva. Neste ponto, o PLP 124/2022 é digno de aplausos porque afasta terrível jurisprudência formada no STJ contrariamente aos contribuintes quanto à matéria.
Mas o PLP 124/2022 poderia ter dado dois passos além em benefício do contribuinte no tratamento da denúncia espontânea da infração.
O primeiro passo diz respeito à espontaneidade pelo cumprimento a destempo, mas antes de qualquer intimação, das obrigações acessórias.
Como se observa da simples leitura do dispositivo legal em apreço, a redação do artigo 138, do CTN, não faz distinção quanto ao cumprimento espontâneo de obrigação principal ou acessória. Pelo contrário, o dispositivo deixa claro que o pagamento do tributo devido e dos juros de mora deverá ocorrer, se for o caso. Ou seja, o próprio Código prevê que há situações em que a espontaneidade poderá ocorrer sem o pagamento do tributo devido, caso típico das obrigações acessórias.
No entanto, a jurisprudência se consolidou em sentido contrário, vedando a aplicação do instituto da denúncia espontânea no cumprimento a destempo de obrigações acessórias, estando a matéria pacificada no STJ através de incontáveis acórdãos.
Logo, o PLP 124/2022 também poderia ter deixado expresso na lei que a denúncia espontânea também se aplica às obrigações acessórias cumpridas em atraso.
O segundo passo que poderia ter sido dado em favor do contribuinte neste tema diz respeito à aplicação da denúncia espontânea nos casos de parcelamento de tributos em atraso.
Ora, se o objetivo do instituto — e do próprio PLP 124/2022 — é o estímulo dos contribuintes à conformidade, nada mais justo do que assegurar o afastamento da multa de mora àquele que, antes de qualquer procedimento de ofício, procura o fisco para regularizar sua situação, ainda que de forma parcelada, visto não possuir recursos para o pagamento à vista.
Então seria o caso do PLP 124/2022 aproveitar a oportunidade para modificar a jurisprudência firmada no STJ no Tema 101 dos Recursos Repetitivos.
O artigo 139-A do CTN, introduzido pelo PLP 124/2022, traz inovação que já é conhecida dos contribuintes do ICMS no Rio de Janeiro. Ao que tudo indica, os membros da Comissão de Juristas inspiraram-se no artigo 69-A, da Lei nº 2.657/96-RJ, para prever algo similar ao Aviso Amigável, previsto na legislação fluminense, estimulando o contribuinte à autorregularização do cumprimento de suas obrigações antes da realização de lançamentos de ofício.
Também merece destaque a alteração promovida ao artigo 142, do CTN, que pelo PLP 124/2022, passa a contar com três parágrafos. O atual parágrafo único transformou-se no §1º e dois “novos” parágrafos foram acrescentados.
O “novo” §2º do artigo 142 contém um deslize e nenhuma novidade para aqueles que conhecem a legislação tributária federal. Na verdade, à exceção do deslize, o §2º de que aqui se trata é cópia quase fiel do artigo 63, caput, da Lei nº 9.430/96.
Neste artigo 142, §2º, portanto, o PLP 124/2022 dispõe que “No lançamento destinado a prevenir a decadência de crédito tributário cuja exigibilidade houver sido suspensa na forma dos incisos II, IV e V do artigo 151 desta Lei, não será́ cominada multa de ofício ou multa de mora a ele relativo”.
Comparado ao artigo 63, da Lei nº 9.430/96, o novo §2º do artigo 142 do Código inclui a vedação de imposição de multa de mora nos lançamentos realizados para prevenir a decadência, bem como afirma — e aqui está o deslize — que as multas não serão aplicadas mesmo na hipótese da exigibilidade ter sido suspensa pelo depósito do montante integral (artigo 151, II, do CTN).
Ocorre que, à luz da jurisprudência pacífica do STJ, não cabe a realização de lançamento de ofício nos casos em que a exigibilidade do crédito tributário está suspensa por força do depósito do montante integral (EREsp 898.992, DJ 27/08/2007; EREsp 464.343, DJ 29/10/2007 e REsp 895.604, DJ 11/04/2008, entre outros).
O §3º introduzido ao artigo 142, do CTN, nada mais é do que o artigo 63, §1º, da Lei nº 9.430/96, esclarecendo que a hipótese de afastamento da penalidade nos casos especificados de suspensão da exigibilidade só terá cabimento quando o suspensão se verificar antes de qualquer procedimento de ofício, vale dizer, no mandado de segurança preventivo ou nas ações declaratórias de inexistência de relação jurídica.
A Comissão de Juristas, no que foi acompanhada pelo Senador Rodrigo Pacheco, propõe a instauração da arbitragem, quando da nomeação do árbitro, como uma das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, num inciso VII a ser incluído ao artigo 151, do CTN.
Também é proposta a inclusão de um inciso VIII ao artigo 151, de modo que a “a transação tributária, conforme decisão do representante da administração tributária, nos termos da legislação específica”, também suspenderá a exigibilidade do crédito tributário.
Neste caso, parece que o PLP 124/2022 está cometendo um equívoco, visto que a transação é hipótese de extinção do crédito tributário prevista no artigo 156, III que, aliás, não foi revogado pelo Projeto.
Nesta ordem de ideias, o melhor é prever que a apresentação de pedido de transação ou a adesão à transação suspendem a exigibilidade do crédito tributário até que seja proferida decisão favorável pela autoridade administrativa competente.
O PLP 124/2022, introduzindo novo paradigma à conflituosa relação fisco-contribuinte, estimula os métodos alternativos para resolução de conflitos. Dentro deste espírito, a sentença arbitral favorável ao sujeito passivo transitada em julgado passa ser mais uma modalidade de extinção do crédito tributário (artigo 156, XII).
Na sequência, o projeto introduz um parágrafo 3º ao artigo 161 do CTN, que nada mais do que a reprodução do artigo 63, §2º, da Lei nº 9.430/96, afirmando, desta vez em lei complementar nacional, que “A interposição da ação judicial favorecida com medida liminar ou antecipação de tutela interrompe a incidência da multa de mora, desde a concessão da medida judicial, até 30 dias após a data da publicação da decisão judicial que considerar devido o tributo”.
Quanto à transação tributária, o PLP incorpora ao artigo 171, do CTN, as modalidades de transação previstas pelo legislador federal na Lei nº 13.988/2020.
A rigor, esta matéria deveria permanecer sob a disciplina de lei ordinária, como aliás vem recorrendo em vários entes da federação. Disciplinar minuciosamente a transação em lei complementar pode causar indesejável engessamento e inibir o legislador ordinário de dispor de forma ampla sobre as hipóteses de acordo.
Os artigos 171-A e 171-B, no mesmo afã de introduzir soluções alternativas para a solução de litígios, dispõem que a arbitragem e a mediação serão utilizadas na solução das lides tributárias.
Consequentemente, o artigo 174, parágrafo único, do CTN, passa a dispor que a instauração do procedimento de mediação e a assinatura do compromisso arbitral serão causas de interrupção do prazo prescricional.
Novidade importante e muito bem-vinda é encontrada no artigo 194-A e no artigo 211-A, ambos estabelecendo critérios de dosimetria para a graduação das penalidades.
O artigo 194-B prevê que as decisões transitadas em julgado no STF e no STJ, em  Repercussão Geral ou nos Recursos Repetitivos favoráveis ao sujeito passivo, terão eficácia vinculante à Administração Tributária. Todavia, o Projeto prevê que a Fazenda Pública terá o prazo de 90 (noventa) dias para baixar os atos normativos necessários a adoção do que restou decidido no Tribunais Superiores.
Considerando a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões em Repercussão Geral/Recursos Repetitivos, a adoção de atos administrativos normativos pela Administração Tributária é totalmente desnecessária, não havendo motivo razoável para diferir a aplicação dos precedentes.
Com efeito, o PLP 124/2022 poderia aproveitar o ensejo para dispor que o reconhecimento de repercussão geral pelo relator no STF, a exemplo do disposto no artigo 1.035, §5º, do Código de Processo Civil, também suspende todos os processos administrativos fiscais versando sobre a mesma matéria.
O artigo 194-C, proposto pelo PLP 124/2022, deixa expresso que o processo de consulta tributária existe, porém traz perigosa inovação ao dispor que a solução de consulta “será observada em relação a todos os demais sujeitos passivos não consulentes que se encontrem nas mesmas situações fáticas e jurídicas, nos termos da legislação específica”.
Em seguida, o PLP 124/2022 cria todo um novo Capítulo ao Título IV do CTN (Capítulo IV) para traçar as normas gerais do processo administrativo tributário.
Percebe-se entre os artigos 208-A e 208-I que o PLP 124/2022 teve forte inspiração no Decreto nº 70.235/72 – que está sendo revogado pelo PL 2483/2022.
O artigo 208-B prevê os requisitos formais de validade de um auto de infração, todavia ignora a possibilidade de lançamentos de ofícios serem materializados por outros atos administrativos, tais como as notas ou notificações de lançamento. O mesmo dispositivo não indica como requisito de validade a indicação de local e data da lavratura, mas isto pode causar confusão na identificação de possível extinção pela decadência, sobretudo quando não constar manifestação expressa da ciência pelo sujeito passivo. Considerando que as legislações dispõem sobre a autoridade competente para a constituição do crédito tributário, seria conveniente que, ao menos a indicação do cargo ou função do autuante constasse como requisito de validade.
O artigo 208-C, I, prevê, desnecessariamente, que a impugnação tempestiva suspende a exigibilidade do crédito tributário. Ora, se o artigo 151, III, não foi alterado, este novo inciso I não precisa existir. Os incisos II, III, IV e VI são muito bem-vindos, confirmando a existência de um duplo grau de “jurisdição” no processo administrativo fiscal, tal como previsto na melhor interpretação do artigo 5º, LV, da Constituição.
Ainda no artigo 208-C, observa-se que o inciso V merece aprimoramento. Ao dispor que a uniformização das decisões divergentes somente ocorrerá quando houver uma instância superior, o PLP 124/2022 acaba por esvaziar esta importante fase do processo administrativo fiscal, responsável pela estabilização do processo e concretização da segurança jurídica. Deste modo, o melhor é deixar expresso que haverá uma instância especial com competência para apreciar os recursos objetivando a uniformização da coletânea de julgados administrativos.
Nesta mesma ordem de ideias, devem ser ajustados o inciso III e o §1º do artigo 208-D.
Digno dos maiores aplausos é o artigo 208-E, que deixa definitivamente de lado a ideia de uma possível revisão, via recurso hierárquico, das decisões definitivas favoráveis ao sujeito passivo.
A exemplo do que ocorre em relação ao artigo 194-B, também caberia no artigo 208-G a previsão de suspensão do processo administrativo tributário nos casos em que o relator no STF ou no STJ identificar matéria a ser apreciada pelo rito da Repercussão Geral ou dos Recursos Repetitivos.
Seria muito bom se o artigo 208-H também autorizasse a realização de intimações na pessoa do procurador ou advogado do sujeito passivo, a exemplo do que ocorre no âmbito do processo judicial.
Considerando o período eleitoral, dificilmente haverá avanço na tramitação do PLP 124/2022 num curto prazo. De todo modo, diante da grande repercussão da matéria, será bastante conveniente que o Congresso Nacional promova audiências públicas para maior discussão do PLP 124/2022 visto que as sugestões da Comissão, como se vê, merecem aprimoramentos.
Por João Luís de Souza Pereira, advogado, mestre em Direito e professor convidado da pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IAG/PUC-RJ).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 4 de outubro de 2022, 16h02
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Autocomposição como forma de solução de conflitos em tempos de pandemia

1. A crise pandêmica
Em razão das medidas emergenciais e excepcionais de lockdown determinadas pelo poder público, preservando-se a vida (artigo 5º, caput, da Constituição) em detrimento das liberdades individuais (artigo 5º, inciso XV, da Constituição), os tribunais [1] decidiram pela suspensão do curso dos prazos processuais [2]. A paralisação, entretanto, agravou ainda mais a morosidade das ações e trouxe prejuízos infindáveis aos jurisdicionados.
Com os fóruns fechados, advogados e advogadas permaneceram por um longo período sem receber honorários advocatícios oriundos de valores depositados em processos judiciais, pois suspensas as expedições de precatórios, mandados de levantamento e requisições de pequenos valores. Ignorando-se o caráter alimentar da verba honorária.
Diante da mínima atividade jurisdicional [3] e o conseguinte choque para com o princípio da celeridade processual (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição), mostrou-se necessária a adoção de meios alternativos à jurisdição para a solução de conflitos.
O cenário pandêmico gerou uma mudança de paradigma, diante da impossibilidade — ainda que momentânea — de ganhos.
2. Métodos de solução de conflitos
Como formas de solução de conflitos, tem-se a divisão: autotutela, heterocomposição e a autocomposição.
A autotutela é a solução do litígio pelas próprias partes, mediante a utilização da força física, moral ou econômica. Apesar de vedada (GONÇALVES, 2020, p. 36), ainda há resquícios no ordenamento jurídico — a exemplo do desforço imediato (§ 1º do artigo 1.210 do Código Civil) e do direito de retenção (artigos 571 e parágrafo único, 578, 663, 681, 708, 742, 1.219, 1.220, do Código Civil).
Acerca da heterocomposição, solução determinada por terceiro, encontram-se: a jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição) e a arbitragem (Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996).
Autocomposição é a solução do litígio determinada de acordo com a autonomia de vontade das partes (DA SALLES et al., 2021, p. 143). São formas: a conciliação, a mediação (indiretas) e a negociação (direta) (Ibid., p. 143).
Por conta de uma maior aceitação da sociedade, a jurisdição, uma das formas de heterocomposição, tornou-se a principal forma de solucionar conflitos.
O termo jurisdição possui origem latina e advém da palavra juris dictio, que significa dizer o direito. Trata-se de uma das funções do Estado a aplicação da lei a um determinado caso, isso em substituição a vontade das partes, observando-se, sempre, a imparcialidade. Compete, por regra, aos órgãos do Poder Judiciário [4].
Ao longo dos anos, contudo, mostrou-se falha, pois tardia e insatisfatória às partes, em vista de não equilibrar dois princípios conflitantes para a materialização da segurança jurídica (artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal): o da celeridade processual e o da ponderação. A rapidez diminui a qualidade da decisão e a qualidade abate a rapidez (ZANARDO, 2010, p. 10).
Conforme Boletim Estatístico do Superior Tribunal de Justiça (BOLETIM, 2022) e a título exemplificativo, apenas no mês de março de 2022 a Corte Superior recebeu 38.604 novos processos, num acervo final de 268.661 processos, tornando-se inegável o grande volume de ações.
O Supremo Tribunal Federal, composto por apenas 11 ministros (artigo 101 da Constituição), encontra-se com um acervo de 21.276 processos (ACERVO, 2022), maior parte (8.330) de Agravo em Recurso Extraordinário (ARE). Para cada Ministro, numa distribuição hipotética igualitária, há, em média, 1.934 processos [5].
Necessário ressaltar, entretanto, que o modelo conciliatório já vinha sendo utilizado há muitos anos pelo Processo do Trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, já previa a conciliação nos dissídios individuais ou coletivos (artigo 764). A obrigatoriedade conciliatória ao final da audiência constava desde 1943 (artigo 850). Contudo, a obrigação de composição inicial foi trazida apenas em 1995, conforme redação dada pela Lei nº 9.022 (artigo 846).
É certo que a nova perspectiva processual trazida pelo Código de Processo Civil com a promoção, a qualquer tempo (artigo 139, inciso V, CPC), da autocomposição (§ 3º do artigo 3º), tenta resgatar o equilíbrio da celeridade processual e o da ponderação, a fim de materializar a segurança jurídica.
Verifica-se, desse modo, a assaz necessidade e a importância na adoção de métodos alternativos à jurisdição para a solução de conflitos.
3. A solução de conflitos em tempos de pandemia
O Conselho Nacional de Justiça, numa tentativa de uniformizar os entendimentos, quando do início da crise pandêmica, editou a Resolução 313, que estabeleceu o regime de plantão extraordinário, mas sem dispor de medidas para a retomada do curso dos prazos processuais.
Somente através da Portaria nº 61, de 31 de março de 2020, decidiu acerca de uma Plataforma Emergencial de Videoconferência para a realização de audiências e sessões de julgamento nos órgãos do Poder Judiciário (artigo 1º). Tardiamente, em 20 de abril de 2020, editou nova Resolução, 314, tomando por regra as audiências virtuais (§ 3º do artigo 6º), mas com modelo de livre escolha, pelos tribunais, de plataformas.
Os advogados e as advogadas, diante da necessidade de sobrevivência, foram tomados pela iniciativa de aproximar as partes e buscar pela solução da lide.
Na época, a circulação de pessoas era mínima. Não se permitiam aglomerações, pois tais medidas seriam necessárias ao combate ao vírus.
Nesse cenário, houve uma eclosão na utilização de videoconferências — e lives. Através desse sistema, tornou-se possível a autocomposição online.
Cite-se:
“A expressão On-line Dispute Resolution (ODR) retrata a utilização de tecnologia da informação e da comunicação para compor conflitos, sendo tal uso referente à totalidade do procedimento ou somente a parte dele.
[…]
Para quem pode usufruir do acesso às redes eletrônicas, há evidentes vantagens, como economia de tempo, de dinheiro e conveniência por não haver gasto com deslocamentos. Contudo, apesar dos benefícios, a realização de sessões consensuais eletrônicas apresenta desafios ligados a fatores como dificuldade de acesso a meios tecnológicos (acentuada por desigualdades socioeconômicas), instabilidade da rede, distanciamento da parte com advogadas(os) e necessária adaptação à diferente forma de interação” (DA SALLES et al., 2021, p. 252).
Distâncias foram reduzidas e a comunicação foi alargada:
“Com a impossibilidade de encontros presenciais e a acelerada virtualização das relações, vimos um aumento exponencial do uso de plataformas de comunicação síncrona, em que as interações são realizadas simultaneamente, geralmente por meio e vídeo e/ou áudio para reuniões, aulas e encontros sociais. A familiarização com essas vias facilitou seu uso para audiências judiciais, inclusive de mediação e de conciliação. É de se esperar que esse movimento se consolide mesmo após a pandemia, dada a redução de custos e de deslocamentos decorrente de sua prática” (ASPERTI et al., p. 84). (grifo nosso)
O acesso à internet possibilitou, assim, a autocomposição.
Entretanto, não se quer negar as dificuldades do meio. Apesar de ser considerada como essencial [6], há inúmeras dificuldades, sociais e técnicas: nem todos possuem meio de acesso à conexão [7], alguns aparelhos não estão aptos em receber tecnologias atuais [8] e algumas pessoas possuem dificuldades técnicas no domínio das ferramentas virtuais.
Cite-se:
“É inadequado impor mediação ou conciliação digital quando a estrutura para que ela aconteça não pode ser provida aos vulneráveis. Nessa linha, ocorrendo instabilidade na conectividade não deverá haver deletéria consequência processual — exceto a redesignação —, arcando as partes com o ônus de suportar mais tempo para a resolução do conflito em curso” (ASPERTI et al., 2020, p. 208).
Diante das dificuldades apontadas, é necessária a busca por um início de comunicação em épocas de restrição da circulação e de atividade mínima judicial.
A primeira, através do telefone. Numa ligação cria-se um princípio de interação que possibilitará na finalização do ato negocial. Ainda que de forma um pouco mais arcaica, os serviços postais não deixaram de ser prestados, e foram considerados essenciais na época (artigo 3º, § 1º, inciso XXI, do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020). Poderão ser utilizados para um início de comunicação.
É certo que o cenário pandêmico redescobriu um leque de opções para a aproximação de pessoas. As ferramentas já estavam à disposição, mas foram essenciais na redução de distâncias em épocas de confinamento. Através delas, tornou-se possível a autocomposição online, uma das poucas saídas para os advogados e advogadas em tempos de crise, decorrente da suspensão do curso dos prazos processuais e a mínima atividade jurisdicional.
4. Conclusão
Conclui-se que a suspensão do curso dos prazos processuais trouxe prejuízos nefastos aos jurisdicionados e à advocacia, tornando-se necessária a utilização dos métodos alternativos na solução de conflitos.
Através da conciliação, mediação ou negociação, abate-se a carga emocional das partes trazida pelo litígio, resolvendo-o de forma rápida e com a menor onerosidade possível. Especialmente em tempos de pandemia, a autocomposição online constitui forma essencial, numa mudança ainda que momentânea de paradigma: da heterocomposição (jurisdição) para a autocomposição.
Os sujeitos processuais, além do dever de preservar a boa-fé (objetiva), são obrigados a cooperar entre si a fim de obterem, a justo prazo, solução definitiva da lide. Em sua essencialidade, a internet contribui para o desenvolvimento dessas relações e ressignifica o princípio da duração razoável do processo, ponderando-se princípios e materializando a segurança jurídica.
São inúmeros os meios redescobertos através da pandemia e à disposição da parte para iniciativa da autocomposição.
Em tempos de crise, a melhor solução é dialogar.
Referências
ACERVO do STF em 2022. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/single/?appid=e554950b-d244-487b-991d-abcc693bfa7c&sheet=9123f27b-bbe6-4896-82ea-8407a5ff7d3d&theme=simplicity&select=clearall. Acesso em 27 de abr. 2022.
ASPERTI, Cecilia; TARTUCE, Fernanda. A conciliação e a mediação online a partir da pandemia do novo Coronavírus: limites e possibilidades. Revista do Advogado, AASP, v. n. 148 (no prelo).
BOLETIM estatístico. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/verpagina.asp?vPag=0&vSeq=374. Acesso em 27 de abr. 2022.
DA SALLES, Carlos Alberto D.; LORENCINI, Marco Antônio Garcia L.; SILVA, Paulo Eduardo Alves. Negociação, Mediação, Conciliação e Arbitragem. São Paulo: Grupo GEN, 2021. 9786559640089. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559640089/. Acesso em: 27 abr. 2022.
DIDIER JR. Fredie. Novo código de processo civil: comparativo com o código de 1973. Fredie Didier Jr. e Ravi Peixoto. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
GONÇALVES, Marcus Vinicius R. Esquematizado – Direito processual civil. Editora Saraiva, 2020. 9786555590043. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555590043/. Acesso em: 27 abr. 2022.
HANTHORNE, Bruna de Oliveira Cordeiro. Métodos consensuais de solução de conflitos. Curitiba: InterSaberes, 2022.
NEVES, Daniel Amorim A. Novo CPC – Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015. 3ª edição. São Paulo: Grupo GEN, 2016. 9788530970321. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530970321/. Acesso em: 28 de abr. 2022.
PESQUISA mostra que 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet. Disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet, acesso em 29/04/2022. Acesso em 29/4/2022, às 10h14
TARTUCE, Fernanda. Mediação nos Conflitos Civis. São Paulo: Grupo GEN, 2020. 9788530992330. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530992330/. Acesso em: 29 abr. 2022.
ZANARDO, Tiago Salatino. Relativização da coisa julgada. 2010. 1 disco laser + 4¾ pol. Trabalho de conclusão de curso (graduação em Direito) – Universidade Católica de Santos, 2010.
[1] O Conselho Nacional de Justiça, numa tentativa de uniformizar os entendimentos, editou a Resolução 313, que estabeleceu o regime de plantão extraordinário, no âmbito do Poder Judiciário, excetuando-se o Supremo Tribunal Federal e a Justiça Eleitoral.
[2] No Estado de São Paulo, o Conselho Superior da Magistratura editou o Provimento CSM nº 2545/2020, para o fim de determinar a suspensão dos prazos processuais, atendimento ao público, audiências de custódia e as Sessões do Tribunal do Júri.
[3] Atos urgentes, processos com réu preso e menor infrator não foram afetados.
[4] Outros Poderes poderão exercer a jurisdição através de suas funções atípicas.
[5] Número meramente exemplificativo no intuito de indicar o volume excessivo de processos.
[6] Conforme Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, foram consideradas essenciais as atividades de telecomunicações e internet, a teor do art. 3º, § 1º, inciso VI.
[7] Apenas 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet (PESQUISA, 2022).
[8] Os principais aplicativos de videochamada: Zoom MeetingsGoogle Meet (antigo Hangouts), Microsoft TeamsWhatsApp e Skype.
Por Tiago Salatino Zanardo, advogado especializado na área cível, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito pela Universidade Católica de Santos, pós-graduado em Direito Processual Penal e em Direito Processual do Trabalho pela Universidade Católica de Santos, pós-graduado em Processo Civil pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e relator do Tribunal de Ética e Disciplina — 14ª Turma Disciplinar da Ordem dos Advogados do Brasil.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 19 de agosto de 2022, 12h11
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